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Opinião
06 de Agosto de 2014 às 15:39

Piketty e as características chinesas

No seu "bestseller", "O capital no século XXI", Thomas Piketty argumenta que o capitalismo agrava as desigualdades através de vários mecanismos. Estes mecanismos têm por base a noção de que r (retorno do capital) cai mais lentamente do que g ("growing" ou seja de crescimento dos rendimentos).

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Embora o debate sobre o trabalho de Piketty se tenha focado sobretudo nas economias desenvolvidas, o seu conceito principal aplica-se à experiência recente da China e merece uma observação mais aprofundada.

 

Claro que uma elevada percentagem da população chinesa ganhou com três décadas de crescimento rápido e sem precedentes do produto interno bruto (PIB). Os investimentos em capitais fixos que formaram a base do modelo de crescimento da China beneficiaram toda a economia. Melhorias em infra-estruturas permitiram, por exemplo, às populações pobres e rurais aumentarem a sua produtividade e os seus rendimentos.

 

À medida que as taxas de investimento crescem para quase metade do PIB, a percentagem do consumo caiu para um terço. O Governo, reconhecendo a necessidade de equilibrar o crescimento, começou a subir o salário mínimo em 2011 para quase o dobro da taxa real do PIB, assegurando que, em média, as famílias tinham mais rendimento disponível para gastar.

 

Mas os preços das casas subiram mais rápido do que os salários e os lucros da produção, o que provocou o retorno do capital para um conjunto selectivo de proprietários de imobiliário e permitiu um crescimento mais rápido do PIB chinês. O mesmo grupo beneficiou também da forte alavancagem implícita do crescimento do crédito. Como resultado, os 1% mais ricos da China acumularam riqueza mais rapidamente do que os seus homólogos no resto do mundo – e muito mais rápido que o chinês médio. 

 

De facto, enquanto o crescimento da China e de outras economias emergentes reduziu as desigualdades entre os países, as desigualdades domésticas cresceram em quase todos os lugares. O cenário de Piketty destaca vários pontos desta tendência.

 

Em primeiro lugar, ao diminuir as barreiras ao comércio e ao investimento, a globalização criou uma espécie de ambiente em que o vencedor fica com tudo e no qual muitos dos actores dos avanços tecnológicos ganharam quota de mercado através de economias de escala. Em particular, à medida que a economia mundial se dirige para a criação de valor com base no conhecimento, um pequeno número de inovadores no sector do marketing mundial, da alta tecnologia e das indústrias criativas ganham muito, com o "boom" mundial nas acções tecnológicas a aumentar os seus ganhos.

 

A concentração de receitas, riqueza e poder que resulta disto mina a estabilidade sistémica ao criar entidades que são demasiado grandes para falirem enquanto impede os pequenos actores de concorrerem com os grandes. O sistema financeiro mundial reforça esta concentração, com taxas de juro reais negativas o que promove a repressão das poupanças das famílias. Dado que os bancos preferem emprestar a grandes empresas e emitentes com colaterais, as pequenas e médias empresas têm de lutar para terem acesso a crédito e a capital.

 

Outro problema é que as baixas taxas de juro aplicadas pelas políticas monetárias não convencionais dos bancos centrais dos países desenvolvidos conduzem a uma "descapitalização" dos fundos de pensões de longo prazo, o que reduz o fluxo de rendimentos de reformas na economia. Em muitas economias emergentes, incluindo a China, o receio generalizado de insuficientes rendimentos provenientes de reformas está a impulsionar as famílias a terem taxas de poupança elevadas.

 

Os economistas concordam amplamente que esta tendência para a desigualdade é insustentável, mas têm opiniões diferentes sobre a forma de a reduzir. Os de direita argumentam a favor de mais inovação no mercado para criar riqueza, enquanto os de esquerda são favoráveis a mais intervenção estatal.

 

De facto, ambas as abordagens têm um papel a desempenhar, em particular, na China, onde o Governo está a seguir uma estratégia de crescimento mais orientada para o mercado embora continue a ter um controlo considerável sobre muitos aspectos económicos. A China precisa de estabelecer um equilíbrio entre a estabilidade apoiada pela política e o progresso impulsionado pelo mercado.

 

Em particular, os factores políticos e institucionais conduziram a um preço abaixo do normal dos recursos fundamentais, gerando riscos significativos. A vasta força de trabalho conduziu a uma redução do preço do trabalho, impedindo a transição para rendimentos elevados e para um modelo de crescimento assente no consumo doméstico. De igual forma, as falhas para contabilizar as externalidades ambientais contribuiu para preços abaixo do normal de recursos naturais como o carvão, impulsionando o consumo excessivo de recursos e criando um problema sério de poluição.

 

Além disso, as políticas que têm como objectivo estabilizar as taxas de câmbio e manter as taxas de juro baixas fizeram com que o capital e os riscos fossem subestimados nos grandes projectos. E os esforços dos Governos locais para financiarem o desenvolvimento através da venda de terrenos a investidores a preços artificialmente baixos impulsionaram grandes investimentos no desenvolvimento do imobiliário, o que causou um aumento dos preços das casas para taxas insustentavelmente altas. Dado que as propriedades são a principal forma de colateral para os empréstimos bancários, os riscos financeiros aumentaram rapidamente.

 

O Governo está agora a tentar mitigar os riscos que os investidores e que os Governos locais assumiram ao permitir mais flexibilidade nas taxas de juro e de câmbio. Mas a transição deve ser cuidadosamente tratada para assegurar que os preços das casas não caem a pique, o que iria aumentar o rácio do crédito mal parado – e possivelmente desencadear uma grande crise financeira.

 

De forma a assegurar a estabilidade social a longo prazo, a China tem de promover a criação de riqueza inclusiva para, por exemplo, estabelecer fortes incentivos à inovação. Este crescimento das empresas de alta tecnologia como a Huawei, Tencent e a Alibaba é um passo na direcção certa. Embora, o facto de a maioria das empresas tecnológicas chineses estarem cotadas no estrangeiro e, por isso, não estarem disponíveis para os investidores do país seja problemático. A regulação e os controlos cambiais evitam que o sector do retalho beneficie da nova criação de riqueza.

 

Outro desafio é o declínio do índice composto da bolsa de valores de Xangai do pico alcançado em 2007, altura em que estava nos 6.000 pontos para os actuais 2.000 pontos. Com os activos financeiros a não darem os dividendos adequados ou apreciação do capital, muitos investidores voltaram-se para o imobiliário para se protegerem contra a inflação.

 

Os líderes chineses estão já a trabalhar no sentido de guiarem a transição para um modelo de crescimento alimentado pelo consumo interno e pela produção de elevado valor acrescentado. Mas os desafios são mais complexos do que isso. O novo modelo – com a ajuda das forças de mercado, quando e onde for apropriado – vai procurar assegurar que a riqueza é criada de forma sustentável e amplamente partilhada. Alcançar isto representaria o cumprimento do sonho chinês. O falhanço significaria que a desigualdade iria continuar a ser um problema mundial. 

 

Andrew Sheng é um destacado membro do Fung Global Institute e membro do Conselho de Assessoria do UNEP [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente] sobre Finanças Sustentáveis. Xiao Geng é director de investigação no Fung Global Institute.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro 

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