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25 de Novembro de 2015 às 20:30

Os anos do "bezzle"

Há mais de meio século, John Kenneth Galbraith apresentou uma descrição definitiva do "crash" de Wall Street, em 1929, num pequeno volume, elegantemente escrito. Segundo observou Galbraith, o desfalque (em inglês, "embezzlement") tem a característica de passarem "semanas, meses, ou anos, entre a consumação do crime e a sua descoberta. Este é o período em que o criminoso obtém os seus ganhos e a pessoa que foi vítima de fraude não dá conta da perda. Há um aumento líquido da riqueza psíquica". Galbraith descreveu esse aumento da riqueza como o "bezzle".

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Num ensaio delicioso, o parceiro de negócios de Warren Buffett, Charlie Munger, defendeu que o conceito pode ser alargado. Esta riqueza psíquica pode ser criada sem ilegalidade: erro ou auto-ilusão é suficiente. Munger cunhou o termo "febezzle" ou "bezzle funcionalmente equivalente" para descrever a riqueza que existe no intervalo entre a criação e a destruição da ilusão.

 

Deste ponto de vista, o crítico que expõe um falso Rembrandt não faz favor algum ao mundo: o proprietário do quadro sofre uma perda, tal como os possíveis contempladores, e os proprietários de Rembrandts genuínos também não ganham muito com isso. O sector financeiro não viu com bons olhos aqueles que sinalizaram que a bolha da Nova Economia do final da década de 1990 ou a expansão de crédito que precedeu a crise financeira global de 2008, tinham criado um grande "febezzle".

 

É mais fácil para os reguladores e para os participantes do mercado seguirem a multidão. Só uma pessoa muito corajosa poria obstáculos àqueles que esperavam ficar ricos negociando acções de internet, ou negaria às pessoas a possibilidade de possuírem as suas próprias casas, pelas quais não podiam pagar.

 

O gozo do "bezzle" é que duas pessoas – que desconhecem a existência e o papel da outra - podem desfrutar da mesma riqueza. O champanhe que Jeff Skilling da Enron bebeu quando a comissão do mercado de valores mobiliários dos Estados Unidos lhe permitiu ajustar ao valor de mercado contratos energéticos de longo prazo foi pago pelos accionistas e credores da empresa, que só viriam a descobrir dez anos mais tarde. Muitas famílias dos Estados Unidos receberam hipotecas em 2006 que nunca poderiam pagar, enquanto os contribuintes nunca haviam sonhado que seriam chamados para resgatar os bancos. Os accionistas dos bancos não poderiam ter imaginado que os dividendos que receberam antes de 2007 eram, na verdade, dinheiro que pediram emprestado a si próprios.

 

Os investidores congratularam-se com os lucros que fizeram com as suas acções de internet, cujo preço aumentou vertiginosamente. Não perceberam que o dinheiro que tinham feito iria derreter como neve numa primavera quente. As reservas de riqueza transitória que foram criadas pareciam reais o suficiente para todos, naquela altura - reais o suficiente para gastar, e reais o suficiente para prejudicar aqueles que se viram obrigados a devolvê-las.

 

A contabilidade pelo valor justo multiplicou as oportunidades de ganhos imaginários, como, por exemplo, os lucros de Skilling com a comercialização de gás. Se medirmos o lucro mediante o ajuste ao valor de mercado, o lucro é o que o mercado crê que ele será. As informações que constam nas contas da empresa - as informações que deveriam moldar a opinião do mercado – hão-de provir do próprio mercado. 

 

E o mercado é propenso a acessos temporários de entusiasmo compartilhado – com a dívida dos mercados emergentes, com acções de internet, com a dívida pública grega. Os traders não precisam esperar para ver quando ou se os lucros se materializam. IBGYBG, dizem eles – "I’ll be gone, you’ll be gone" (fazer um negócio e deixar que outros paguem por isso).

 

Existem numerosas vias para o "bezzle" e o "febezzle". Num esquema Ponzi, os primeiros investidores são generosamente recompensados à custa dos últimos até que se esgota a entrada de participantes. Tais práticas – ilegais, como as praticadas por Bernard Madoff - são funcionalmente equivalentes ao que acontece durante uma bolha nos preços dos activos.

 

Conduzir colado ao carro da frente, ou apanhar moedas de cêntimo em frente de um rolo compressor são outras fontes de "febezzle". Os investidores procuram pequenos ganhos regulares pontuados por grandes perdas ocasionais, uma abordagem exemplificada pelo carry trade em que os investidores pediram euros emprestados na Alemanha e França para emprestar na Grécia e em Portugal.

 

O "martingale" duplica com as apostas perdidas até o trader ganhar – ou o dinheiro acabar. Os traders "desonestos" escoltados nas suas mesas de trabalho por guardas de segurança são, tipicamente, expoentes  mal-sucedidos do martingale. E a oportunidade de alternar entre a carteira de negociação e a carteira bancária cria boas oportunidades para as instituições financeiras obterem lucros e estacionarem as perdas.  

 

A história essencial do período de 2003 a 2007 é que os bancos anunciaram grandes lucros e pagaram uma parte substancial dos mesmos aos seus traders e funcionários de alto nível. Em seguida, descobriram que foi tudo um erro, destruíram mais ou menos os seus accionistas, e usaram o dinheiro dos contribuintes para negociar o seu caminho em direcção a novos níveis de lucros declarados.

 

A história essencial da crise da Zona Euro é que os bancos em França e na Alemanha declararam lucros com dinheiro que haviam emprestado ao sul da Europa e passaram o crédito malparado para o Banco Central Europeu. Em ambas as narrativas, os traders pediram dinheiro emprestado do futuro. E então o futuro chegou, como sempre acontece, transformando o "bezzle" num desastre.

 

John Kay, professor visitante de Economia na London School of Economics, é membro do St John’s College, Oxford, da British Academy, e da Royal Society of Edinburgh.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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