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23 de Abril de 2017 às 14:00

Os espiões sem fins lucrativos na Rússia

Os receios de desintegração do estado russo, o legado do império, é um pensamento sempre presente na mente dos governantes. É a principal barreira ao desenvolvimento de políticas democráticas.

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Hoje, nada aborrece mais a opinião pública ocidental, em relação à Rússia, do que a sua lei relativa a agentes estrangeiros. Aprovada em Julho de 2012, a lei exige a todas as organizações não comerciais (NCO na sigla em inglês) que estejam envolvidas em "actividades políticas" (indefinidas) se registem no ministério da Justiça como "estando a desenvolver funções de agente estrangeiro". A lei das Organizações Indesejáveis, uma medida de acompanhamento de 2015, exige que qualquer NCO se identifique publicamente como um "agente estrangeiro".

 

A redacção é peculiar e significativa. Afinal, qual é a "função de um agente estrangeiro", em linguagem coloquial, que não seja servir os interesses de uma potência estrangeira? De facto, a lei russa evita que as NCO que não estejam sob o controlo do Estado, desenvolvam actividades no país. Certamente, a designação não lhes permite receber financiamento russo o que pode fazer com que lhes sejam retirados os registos. Não são apenas estrangeiras: têm agentes infiltrados e traidores.

 

Alguns grupos entraram em liquidação voluntária; outros têm sido suprimidos por não cumprirem os regulamentos; e outros estão no exílio. As vítimas mais ilustres têm sido o Centro Sakharov, o Centro Memorial para os Direitos Humanos e a Escola para a Educação Cívica de Moscovo. A Universidade Europeia de São Petersburgo, depois de ter resistido à tentativa de ser estigmatizada como "agente estrangeiro", tem de enfrentar agora a possibilidade de ser encerrada por violações técnicas triviais – a táctica burocrática favorita.  

 

A vingança contra os grupos independentes, com ligações estrangeiras, não dá à Rússia nenhum benefício e prejudica a sua reputação internacional. É possível tentar decifrar esta questão em três pontos.

 

Em primeiro lugar, a lei de 2012 era uma resposta directa às grandes manifestações públicas, que começaram no ano anterior em Moscovo, em São Petersburgo e em outras cidades russas, como forma de protesto contra a decisão de Vladimir Putin de ficar para um terceiro mandato como presidente, para protestarem contra a sua eleição e contra a tomada de posse. No seu único discurso de campanha, a 23 de Fevereiro de 2012, Putin recordou a vitória da Rússia sobre Napoleão em 1812, e alertou para interferência externa nos assuntos internos do país. Isto foi uma referência clara à Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004, alegadamente organizada e financiada pela CIA, que derrotou Viktor Yanukovych, o candidato presidencial preferido por Moscovo. A lei de 2015 surgiu depois da revolta de Maidan, em Kiev, que depôs pela segunda vez Yanukovych.

 

Os receios da desintegração do estado russo, o legado do império, é pensamento sempre presente na mente dos governantes. É a principal barreira ao desenvolvimento de políticas democráticas.

 

É um legado que continua preso a um mundo obscuro de "organizações de fachada": "agentes estrangeiros" reais, aparentemente independentes e devotos de causas dignas, mas secretamente controlados a partir do estrangeiro. Os russos sabem tudo sobre eles porque os soviéticos criaram frequentemente estes agentes como ferramentas de política externa clandestina. A "fachada" teria várias figuras do desporto, da cultura, académicos respeitáveis e que muitas vezes não sabiam que estavam a ser usados; a organização real era controlada pelo KGB. O que era produzido por esta organização seria favorável, ou pelo menos não seria crítica, em relação ao ponto de vista soviético.

 

A CIA respondeu na mesma moeda. O Congresso para a Liberdade Cultural, fundado em 1950, foi uma das muitas "fachadas" que financiou revistas políticas e literárias muito conhecidas, como é o caso da Encounter, no Reino Unido, e que ajudou intelectuais dissidentes que estavam na Cortina de Ferro.

 

Quanta influência estas "fachadas" tinham nos acontecimentos é difícil de saber. Para os viciados em teorias da conspiração, estas "fachadas" eram parte essencial da história secreta da Guerra Fria. E os meios de comunicação de hoje, impressos e digitais, dão uma nova oportunidade a estas "fachadas". Com uma imaginação suficientemente vívida, é possível ver o longo braço de Putin na nomeação de George Osborne para director do londrino Evening Standard, detido pelo oligarca russo Alexander Lebedev.

 

Mas as suspeitas em relação ao estrangeiro têm raízes muito mais profundas na Rússia. Qualquer pessoa que esteja a tentar aprender russo enfrenta a extraordinária opacidade da língua. O genoma cultural dos russos (ADN) evoluiu de um ambiente de campesinato, no qual as propriedades eram detidas e a vida vivida em comum. (O comunismo soviético, apesar de todos os contributos ocidentais, tem as suas raízes na ideia tradicional de propriedade colectiva). Os relacionamentos eram governados não por normas legais mas por entendimentos informais e pela distinção clara entre o que estava dentro e o que estava fora da mentalidade comum. Numa sociedade tradicionalmente fechada, os russos amam ou odeiam, explicou o cineasta Andrei Konchalovsky, em 2015; eles não respeitam.

 

A ocidentalização começou com Pedro, o Grande, no século XVIII, e foi um crescimento forçado – um excerto e não um transplante. Sem Pedro, o Grande, escreve Konchalovsky, não teria existido Pushkin, Tchaikovsky e Tolstoy, apenas Pimen, Feofan Grek e Andrei Rublev. Mas isso não mudou o centro de gravidade da civilização russa, que continua colectiva e eslavófila, não individual e ocidental. O Ocidente deu à Rússia os seus dissidentes e os seus mísseis, mas não o seu significado. Putin entende bem isto. Ocasionalmente, o seu discurso cai na gíria usada nas prisões, ou tyurma, o epítome de uma sociedade fechada.

 

É demasiado esperar uma revogação da lei dos agentes estrangeiros. Mas a Rússia pode fazer uma concessão gratuita, ao limitar os registos de "agentes estrangeiros" às NCO que recebem mais de 50% do seu financiamento através de fontes que não são russas. Isto iria desbloquear o financiamento, permitindo que tais grupos operassem na Rússia. E o Ocidente poderia oferecer também uma concessão grátis – como a retirada de alguns russos da lista de pessoas impedidas de viajar para a Europa e Estados Unidos. Com a paz e a prosperidade mundial presa a uma relação estável entre a Rússia e o Ocidente, pequenos passos para reduzir a paranoia é pedir muito?

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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