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Brahma Chellaney 31 de Maio de 2018 às 14:00

O mundo segundo Trump e Xi

A estratégia "América Primeiro", de Trump, e o "Sonho Chinês", de Xi, baseiam-se numa premissa comum: que as duas maiores potências do mundo têm total liberdade para agir de acordo com os seus próprios interesses.

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A maior democracia do mundo, os Estados Unidos, está a parecer-se cada vez mais com a maior e mais antiga autocracia do mundo, a China. Ao adoptar políticas agressivamente unilaterais que desconsideram o amplo consenso global, o presidente Donald Trump justifica o desafio antigo do seu homólogo chinês Xi Jinping ao direito internacional, exacerbando riscos já sérios para a ordem mundial baseada em regras.

 

A China está a perseguir, de forma agressiva, as suas reivindicações territoriais no Mar do Sul da China - inclusive militarizando áreas disputadas e empurrando as suas fronteiras para águas internacionais - apesar de uma decisão arbitral internacional que as invalida. Além disso, o país transformou os fluxos fluviais transfronteiriços em armas e usou o comércio como um instrumento de coerção geoeconómica contra países que se recusam a seguir a sua vontade.

 

Os EUA condenaram muitas vezes essas acções. Mas, sob a liderança de Trump, essas condenações perderam a credibilidade, até porque são intercaladas com elogios a Xi, a quem Trump chamou de "fantástico" e "um grande cavalheiro". Na verdade, o comportamento de Trump aumentou a percepção de hipocrisia dos EUA, encorajando ainda mais a China no seu revisionismo territorial e marítimo na região do Indo-Pacífico.

 

Há muito que os Estados Unidos perseguem uma política externa unilateralista, exemplificada pela invasão do Iraque por George W. Bush em 2003 e pela derrube do regime de Muammar el-Gaddafi na Líbia por Barack Obama em 2011. Embora Trump não tenha (ainda) derrubado um regime, adoptou a abordagem do unilateralismo assertivo vários passos adiante, travando um ataque multifacetado à ordem internacional.

 

Quase imediatamente depois de ter entrado na Casa Branca, Trump retirou os EUA da Parceria Transpacífico (TPP), um ambicioso acordo de comércio e investimento de 12 países patrocinado por Obama. Logo depois, Trump rejeitou o acordo climático de Paris, fazendo dos EUA o único país que não participa desse esforço.

 

Mais recentemente, Trump transferiu a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, apesar do amplo consenso internacional para determinar o estatuto da cidade contestada no contexto de negociações mais amplas sobre a solução do conflito israelo-palestiniano. Quando a embaixada foi inaugurada, moradores palestinianos de Gaza aumentaram os seus protestos exigindo que refugiados palestinianos pudessem voltar ao que agora é Israel, levando soldados israelitas a matarem pelo menos 62 manifestantes e a ferirem mais de 1.500 pessoas na faixa de Gaza.

 

Trump tem a sua quota de culpa por essas baixas, já para não falar da sua responsabilidade na destruição do papel tradicional dos EUA como mediador do conflito israelo-palestiniano. O mesmo se aplica a qualquer conflito e instabilidade que surja da retirada de Trump do acordo nuclear com o Irão de 2015, apesar do total cumprimento dos seus termos por parte do Irão.

 

O ataque de Trump à ordem baseada em regras estende-se também - e de forma ameaçadora - ao comércio. Ainda que Trump tenha dado um passo atrás em relação à China, suspendendo as suas prometidas tarifas sobre as importações chinesas para os EUA, tentou coagir e envergonhar aliados dos EUA como o Japão, Índia e Coreia do Sul, apesar do seu excedente comercial combinado com os EUA - 95,6 mil milhões de dólares em 2017 - representar cerca de um quarto do da China.

 

Trump forçou a Coreia do Sul a aceitar um novo acordo comercial e tentou pressionar a importante indústria de tecnologia da informação da Índia - que gera 150 mil milhões de dólares por ano - impondo uma política restritiva de vistos. Quanto ao Japão, Trump forçou o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, a aceitar um novo quadro comercial que os EUA vêem como um início de negociações sobre um acordo bilateral de livre comércio.

 

O Japão preferiria que os EUA voltassem à TPP, agora liderada pelo Japão, que garantiria uma maior liberalização geral do comércio e regras mais justas do que num acordo bilateral, que os EUA tentariam inclinar a seu favor. Mas Trump - que também se recusou a excluir permanentemente o Japão, a União Europeia e o Canadá das tarifas do aço e alumínio - não tem consideração pelas preferências dos seus aliados.

 

Abe, por exemplo, "suportou repetidas surpresas e bofetadas" de Trump. E não está sozinho. Como o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, disse recentemente, "com amigos como [Trump], quem precisa de inimigos".

 

As tácticas comerciais de Trump, que têm como objectivo travar o declínio económico relativo da América, reflectem o mesmo mercantilismo muscular que a China usou para se tornar rica e poderosa. Ambos os países estão agora a enfraquecer activamente o sistema de comércio baseado em regras; e mais do que isso, parecem estar a provar que, enquanto um país é poderoso o suficiente, pode desrespeitar regras e normas partilhadas com impunidade. No mundo de hoje, parece que a força só respeita a força.

 

Essa dinâmica pode ser vista na forma como Trump e Xi respondem ao unilateralismo um do outro. Quando os EUA implementaram o seu Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude (THAAD) na Coreia do Sul, a China usou a sua influência económica para retaliar contra a Coreia do Sul, mas não contra a América.

 

Da mesma forma, depois de Trump ter assinado o Taiwan Travel Act, que incentiva visitas oficiais entre os EUA e a ilha, a China encenou jogos de guerra contra Taiwan e subornou a República Dominicana para romper relações diplomáticas com o governo taiwanês. Os EUA, no entanto, não enfrentaram consequências da China.

 

Quanto a Trump, enquanto pressionava a China a mudar as suas políticas comerciais, dava a Xi livre passe sobre o Mar do Sul da China, tomando apenas medidas simbólicas - como a liberdade de operações de navegação - contra o expansionismo chinês. Também ficou em silêncio em Março, quando as ameaças militares chinesas forçaram o Vietname a interromper a perfuração de petróleo dentro da sua própria zona económica exclusiva. E optou por permanecer neutro no verão passado, quando a construção de estradas por parte da China no disputado planalto Doklam desencadeou um impasse militar com a Índia.

 

A estratégia "América Primeiro", de Trump, e o "Sonho Chinês", de Xi, baseiam-se numa premissa comum: que as duas maiores potências do mundo têm total liberdade para agir de acordo com os seus próprios interesses. A ordem mundial do G2 que eles estão a criar não é uma ordem. É uma armadilha, na qual os países são forçados a escolher entre uns Estados Unidos imprevisíveis e transaccionais, liderados por Trump, e uma China ambiciosa e predatória.

 

Brahma Chellaney, professor de Estudos Estratégicos no Centro de Pesquisa Política em Nova Deli e membro da Academia Robert Bosch em Berlim, é autor de nove livros, incluindo Asian JuggernautWater: Asia’s New Battleground, e Water, Peace, and War: Confronting the Global Water Crisis.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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