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14 de Junho de 2015 às 23:31

Modi na China

A China e a Índia têm um relacionamento carregado, caracterizado por disputas purulentas, desconfianças profundas e uma ambivalência sobre cooperação política. O crescimento do comércio bilateral, longe de ajudar a virar a página das antigas disputas, tem sido acompanhado pelo aumento dos incidentes fronteiriços, das tensões militares e da rivalidade geopolítica, bem como das divergências sobre as questões ribeirinhas e marítimas.

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Desde que assumiu o cargo no ano passado, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi tem procurado transformar o relacionamento do seu país com a China, argumentando que as perspectivas da Ásia dependem "em grande medida" daquilo que os dois países - que juntos correspondem a um terço da população mundial – "alcançarem individualmente" e "fizerem juntos". Mas, como a visita de Modi à China evidenciou, as questões que dividem os titãs demográficos permanecem de pé.

 

Os líderes da China festejaram a visita de Modi em grande estilo. Quando Modi chegou a Xian - uma das quatro antigas capitais da China e a cidade natal do presidente Xi Jinping - Xi levou-o pessoalmente a uma excursão no Big Wild Goose Pagoda. (Modi, posteriormente, vangloriou-se da sua estreita amizade com Xi). Em Pequim, o primeiro-ministro Li Keqiang posou para uma selfie com Modi fora do Templo do Céu.

 

O que os líderes da China não fizeram foi render-se em qualquer questão substantiva - e não foi por falta de esforço de Modi. Apesar da conduta pragmática e conciliadora de Modi, o seu apelo para que a China "reconsiderasse a sua abordagem" sobre algumas das questões que estão a impedir a parceria de atingir todo o seu "potencial" foi ignorado.

 

Consideremos as discussões relativas à disputa dos dois países sobre as longas fronteiras dos Himalaias. Aludindo a uma série de incursões militares chinesas desde 2006, Modi declarou que "uma sombra de incerteza" paira sobre a região de fronteira, porque a "linha de controlo real" que a China traçou unilateralmente, depois de derrotar a Índia numa guerra de 1962, nunca foi mutuamente clarificada. Modi propôs que se retomasse o processo de esclarecimento, mas sem sucesso.

 

Na verdade, a razão para a ambiguidade continuada é que, em 2002, depois de mais de duas décadas de negociações, a China renegou uma promessa de troca de mapas com a Índia que abrangem os dois principais sectores em disputa - Arunachal Pradesh, do tamanho da Áustria, e Aksai Chin, do tamanho da Suíça, juntamente com as suas áreas adjacentes - localizados numa das extremidades dos Himalaias. Quatro anos mais tarde, a China reavivou a sua pretensão há muito adormecida para Arunachal Pradesh, e desde então tem violado a sua fronteira várias vezes. Até que se opôs à visita de Modi a Arunachal Pradesh em Fevereiro.

 

No entanto, com o objectivo de construir um relacionamento bilateral, Modi anunciou que os turistas chineses são agora elegíveis para receber vistos de eletrónicos à chegada à Índia – contrariando o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que acabara de dizer à imprensa que nenhuma decisão havia sido tomada. O ministro dos Negócios Estrangeiros da China saudou a medida como um "presente" - uma descrição precisa, dado que a China não ofereceu nada em troca. Pelo contrário, a China tem como objetivo minar a soberania da Índia, através da atribuição de vistos agrafados aos residentes de Arunachal Pradesh.

 

Além disso, a China - que, através da anexação do Tibete se tornou hidro-hegemónica na região - também se recusou a celebrar um acordo para vender à Índia dados hidrológicos sobre os rios transfronteiriços durante todo o ano, e não apenas durante a estação das monções. Assim, a China não se recusa apenas a criar um pacto de partilha de água com os seus vizinhos; também não vai partilhar dados completos sobre o fluxo dos rios a montante.

 

Para piorar ainda mais as coisas, há um toque inconfundível de condescendência nos pronunciamentos, contidos na declaração conjunta emitida no final da visita de Modi, de que a China "tomou nota das aspirações da Índia" para se juntar ao Grupo de Fornecedores Nucleares, e "compreende e apoia as aspirações da Índia de desempenhar um papel maior nas Nações Unidas, incluindo no Conselho de Segurança". A China é a única grande potência que não apoiou a candidatura da Índia para se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança.

 

Os resultados económicos foram igualmente desiguais. Muitos dos negócios que Modi fez com líderes empresariais em Xangai - supostamente no valor de 22 mil milhões dólares americanos – implicam que os bancos estatais chineses financiem as empresas indianas para a compra de equipamentos chineses. Isso vai piorar ainda mais o já enorme défice comercial da Índia com a China, pouco fazendo para impulsionar o escasso investimento chinês na Índia, que totaliza apenas 1% do excedente anual do comércio bilateral da China - um excedente que aumentou em um terço desde que Modi assumiu o cargo, estando agora a aproximar-se dos 50 mil milhões de dólares.

 

De facto, a China e a Índia têm uma das relações comerciais mais tortas do mundo. As exportações chinesas para a Índia valem cinco vezes mais do que as suas importações da Índia. Além disso, a China adquire sobretudo matérias-primas provenientes da Índia e vende mercadorias de valor agregado. Com a Índia a fazer poucos esforços para travar a avalanche de produtos chineses baratos que inundam o seu mercado - apesar da muito elogiada campanha "Make in Índia", de Modi – o estatuto da China como maior fonte de importações do país parece seguro.

 

A China está habituada a usar o comércio e a penetração comercial para reforçar a sua influência noutros países. No caso da Índia, com o objectivo de limitar as opções do país, está a alavancar a sua influência como um importante fornecedor de energia, de telecomunicações e de ingredientes farmacêuticos, e como um credor para as empresas indianas com problemas financeiros. Ao permitir que as distorções comerciais de que a China beneficia persistam – e cresçam - a Índia está, na verdade, a promover esta estratégia.

 

Por mais que Modi tente dar uma interpretação positiva à sua recente visita à China, destacando os 24 acordos (maioritariamente simbólicos) que foram celebrados, não pode obscurecer as duras realidades estratégicas que afectam a relação bilateral. Sem uma abordagem nova, o relacionamento sino-indiano parece condenado a permanecer altamente desigual e controverso.

 

Brahma Chellaney, professor de Estudos Estratégicos no Centro de Pesquisa Política de Nova Deli, é o autor de "Asian Juggernaut", "Water: Asia’s New Battleground" e "Water, Peace, and War: Confronting the Global Water Crisis".

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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