Opinião
A luta solitária da China contra a deflação
A presidência da China este ano no G20 é uma oportunidade importante de enfatizar que a estabilidade do yuan é relevante não só para a China, mas também para o sistema financeiro mundial como um todo.
No início de Fevereiro, quando a China celebrava o arranque do Ano do Macaco, uma "newsletter" de grande circulação de um hedge-fund enervou os mercados financeiros, ao prever uma travagem brusca da economia, o colapso do sistema bancário paralelo ["shadow-banking"] e a desvalorização do yuan. A estabilidade apenas foi recuperada depois de o governador do Banco Popular da China, Zhou Xiaochuan, em entrevista à revista Caixin, ter explicado a lógica da política cambial da China.
Mas a capacidade de a China manter essa estabilidade depende de uma multiplicidade de factores inter-relacionados, tais como o baixo crescimento da produtividade, a queda das taxas de juro reais, tecnologias disruptivas, o excesso de capacidade e o elevado endividamento, bem como o excesso de poupança. Na verdade, a actual batalha em torno da taxa de câmbio do yuan reflecte uma tensão entre os interesses dos "engenheiros financeiros" - tais como os gestores de hedge-funds baseados em dólares - e os "engenheiros reais" - as autoridades chinesas.
Os mercados de câmbio são, em teoria, jogos de soma zero: a perda do comprador é o ganho do vendedor, e vice-versa. Os engenheiros financeiros adoram especular nestes mercados, porque os custos de transação são muito baixos e as posições curtas alavancadas são permitidas, sem a necessidade de proteger um activo subjacente. A taxa de câmbio, no entanto, é um preço de um activo que tem enormes repercussões económicas, porque afecta o comércio real e os fluxos de investimento directo.
Hoje em dia, os engenheiros financeiros influenciam cada vez mais a taxa de câmbio através de transacções financeiras que poderão não estar ligadas a fundamentais económicos. Porque os mercados financeiros também falham, se os investidores com posições curtas ganham ao empurrar as taxas de câmbio e a economia real para um baixo nível de equilíbrio, as perdas assumem a forma de investimento, emprego e salários. Por outras palavras, o ganho dos engenheiros financeiros é o sofrimento real das pessoas.
De modo a atingir esses ganhos, os engenheiros financeiros usam os meios de comunicação social para influenciar o comportamento do mercado. Por exemplo, os investidores com posições curtas retratam as quedas acentuadas dos preços das matérias-primas e do petróleo como factores negativos, apesar de os mais baixos preços das energias, na verdade, beneficiarem a maioria dos consumidores - e até mesmo alguns produtores, ao permitir-lhes competir com os seus congéneres oligopolista. Estima-se que os baixos preços do petróleo e das matérias-primas podem aumentar a balança comercial da China em cerca de 460 mil milhões de dólares, compensando grande parte da perda nas reservas cambiais em 2015.
Da mesma forma, a desaceleração do crescimento da China e a aceleração do crédito malparado estão apenas a ser discutidos como acontecimentos negativos. Mas são também dores necessárias no caminho da reestruturação da oferta, destinada a eliminar o excesso de capacidade, melhorando a eficiência dos recursos e acabando com as indústrias poluentes.
Os engenheiros reais, excluindo aqueles cujos discernimentos são encobertos por interesses financeiros pessoais, devem contrariar esta influência, ao mesmo tempo que recusam sucumbir à tentação de soluções fáceis. Felizmente, as autoridades da China há muito que compreenderam que uma taxa de câmbio do yuan estável é importante para a estabilidade, nacional, regional e mundial. De facto, é por isso que não desvalorizaram o yuan durante a crise financeira asiática. Constataram o que a maioria dos analistas deixou passar: manter o dólar como a principal moeda de refúgio para as poupanças globais, com taxas de juro perto de zero, teria o mesmo impacto deflacionário que o padrão ouro teve na década de 1930.
No entanto, face às forças deflacionárias actuais, os engenheiros reais das principais economias mundiais têm revelado relutância ou incapacidade em voltar a inflacionar. Os EUA, a maior economia do mundo, não vão utilizar ferramentas orçamentais para atingir esse fim, devido a restrições políticas internas. A falta de vontade da Europa em impulsionar a inflação reflecte o medo profundo que a Alemanha tem da inflação (que sustenta o seu compromisso de longo prazo com a austeridade). O Japão não pode voltar a inflacionar devido à sua população envelhecida e à implementação hesitante do plano económico do primeiro-ministro, Shinzo Abe, conhecido como "Abenomics". E a China ainda está a pagar a inflação excessiva, causada pelo seu pacote de estímulos de quatro biliões de yuans em 2009, que acrescentou mais 80 biliões de yuans à própria dívida.
Entretanto, as consequências da engenharia financeira estão a intensificar-se. As taxas de juro zero e negativas não incentivaram apenas a especulação de curto prazo nos mercados de ativos e prejudicaram os investimentos de longo prazo. Também destruíram o modelo de negócio dos bancos, das companhias de seguros e das gestoras de activos. Porque devem os aforradores pagar aos bancos ou aos gestores de fundos entre 1% e 2% de custos de intermediação, quando os retornos potenciais dos investimentos são zero? Um sistema em que os intermediários financeiros podem aumentar os lucros só por aumentarem a alavancagem – apenas sustentável se aumentada a expansão quantitativa - está condenado ao fracasso.
De facto, em retrospectiva, parece claro que os engenheiros financeiros apenas superaram a economia real graças ao apoio dos engenheiros "super-financeiros" – isto é, os bancos centrais. Inicialmente, a expansão do balanço – em cinco biliões de dólares desde 2009 – deu aos bancos o financiamento barato que precisavam para evitar o fracasso. Mas a desalavancagem bancária (provocada por exigências regulatórias mais rígidas), juntamente com as taxas de juros negativas, espoletou uma desvalorização das acções das instituições financeiras, levando a mais destruição de valor pró-cíclico através da deflação dos preços, aumentando a falta de liquidez e as vendas generalizadas.
A experiência tem ensinado os engenheiros reais da China que a única forma de escapar à deflação é através de reformas estruturais dolorosas - não através do dinheiro fácil e da desvalorização competitiva. A questão é se os EUA e outros países de reserva cambial irão partilhar o fardo de manter a estabilidade cambial mundial, através de um acordo semelhante ao "Plaza Accord" de 1985, em que cinco das principais economias concordaram em depreciar o dólar face ao iene japonês e ao marco alemão. Se não, porque razão os credores asiáticos, especialmente a China, continuarão a financiar a especulação contra si mesmos?
O dólar norte-americano é um refúgio, mas os aforradores que precisam de liquidez ainda carecem de um credor imparcial de último recurso. Depositar em moedas de reserva a taxas de juro próximas de zero, apenas fará sentido se o banqueiro não estiver a financiar especulação financeira contra o depositante. Contudo, tal como estão, os engenheiros financeiros têm muita liberdade. Na verdade, se forem grandes o suficiente, não podem falir, ou até mesmo, aparentemente, ir para a cadeia.
A presidência da China este ano no G20 é uma oportunidade importante de enfatizar que a estabilidade do yuan é relevante não só para a China, mas também para o sistema financeiro mundial como um todo. Se o dólar norte-americano entrar numa nova ronda de valorização, os únicos vencedores serão os engenheiros financeiros.
Andrew Sheng é assistente distinguido do Asia Global Institute na Universidade de Hong Kong e membro do UNEP Advisory Council on Sustainable Finance. Xiao Geng, director do IFF Institute, é professor na Universidade de Hong Kong e assistente no Asia Global Institute.
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Tradução: André Tanque Jesus