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28 de Novembro de 2016 às 20:00

A poucos passos de Trump

À medida que Trump passa do populismo para a política, os liberais não devem afastar-se com repulsa e desespero mas envolver-se com o potencial positivo do Trumpismo.

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A elite do Partido Republicano foi rápida a apresentar o presidente eleito, Donald Trump, como uma garantia de continuidade. Claro que não é isso. Donald Trump fez campanha contra a elite política e, como disse num comício antes das eleições, uma vitória para ele seria um "Brexit mais, mais, mais". Dois terramotos políticos tiveram lugar apenas com meses de distância, e certamente mais se seguirão, pelo que podemos todos concordar com o veredito do embaixador francês nos Estados Unidos: o mundo como o conhecemos "está a desmoronar-se perante os nossos olhos".

 

A última vez que aparentemente isto aconteceu foi na altura das duas guerras mundiais, em 1914 e em 1945. A noção, na altura, de um mundo a "desmoronar", foi captada pelo poema "O segundo advento" de William Butler Yeats, publicado em 1919. "Tudo se desmorona; o centro cede; a anarquia abata-se sobre o mundo". Com as instituições governamentais tradicionais desacreditadas pela guerra, o vazio de legitimidade foi preenchido por demagogos poderosos e ditaduras populistas: "Aos melhores falta convicção, enquanto os piores estão cheios de paixão intensa". Oswald Spengler teve a mesma ideia na sua obra intitulada "O declínio do Ocidente", publicada em 1918.

 

O prognóstico político de Yeats estava moldado pela sua escatologia religiosa. Yeats acreditava que o mundo tinha de transitar do "pesadelo" para o "nascer em Belém". Naquela altura, ele estava certo. O pesadelo identificado iria prolongar-se até à Grande Depressão de 1929-1932 e culminar na Segunda Guerra Mundial. Estes factos eram prelúdios do "segundo advento", não de Cristo mas do liberalismo construído com fundações sociais firmes.

 

Mas os pesadelos da depressão e os prelúdios de guerra são necessários? É o horror o preço que temos de pagar pelo progresso? O mal foi, de facto, frequentemente o agente do bem (sem Hitler, não existiram as Nações Unidos, não existiria a Pax Americana, não existiria a União Europeia, nem tabu sobre o racismo, nem descolonização, nem a teoria económica de Keynes, nem muitas outras coisas). Mas isto não significa que o mal é necessário para o bem, muito menos que devemos desejá-lo como um meio para atingir um fim.

 

Não podemos aceitar as convulsões políticas porque não temos a certeza que geram um Roosevelt em vez de um Hitler. Qualquer pessoa decente e racional tem esperança num método mais brando para alcançar sucesso.

 

Mas o método mais brando – chamemos-lhe uma democracia parlamentar ou constitucional – deve colapsar de forma periódica e de uma maneira desastrosa? A explicação usual é que o sistema falha porque as elites perdem o contacto com as massas. Mas apesar de se poder esperar que este afastamento ocorra em regimes ditatoriais, porque é que o desencanto com a democracia tem as suas raízes na própria democracia?

 

Uma explicação, e que remonta a Aristóteles, é a perversão da democracia pela plutocracia. Quanto mais desigual uma sociedade for, mais o estilo de vida e valores dos ricos divergirem dos valores de pessoas consideradas "normais". Chegam a habitar comunidades, que estão fechadas simbolicamente, nas quais apenas um tipo de conversa é tido como decente, respeitável e aceitável. Isto representa em si mesmo uma privação considerável de direitos. Para os apoiantes de Trump, as suas gafes não eram de todo gafes, ou se eram, isso não teve importância para os seus apoiantes.

 

Mas é a economia, e não na cultura, que ataca o coração da legitimidade. Quando as recompensas do progresso económico recaem sobre aqueles que já são ricos é que o desfasamento entre os valores culturais das minorias e das maiorias se torna seriamente desestabilizadora. E isto, penso, é o que está a acontecer no mundo democrático.

 

O segundo advento do liberalismo - representado por Roosevelt, Keynes e pelos fundadores da União Europeia - foi destruído pela globalização económica: pela busca por um equilíbrio ideal através da livre circulação de bens, capitais e trabalhadores, com a sua tolerância conjunta perante a criminalidade financeira, pelas suas recompensas para poucos, pelos elevados níveis de desemprego e subemprego e a pela redução do papel do Estado na atribuição de assistência social. A desigualdade resultante dos desfechos económicos remove o véu democrático que esconde da maioria dos cidadãos a verdade sobre como funciona o poder.

 

A "paixão intensa" dos populistas transmite uma mensagem simples, fácil de compreender e que ressoa: as elites são egoístas, corruptas e frequentemente criminosas. O poder deve ser devolvido às pessoas. Não é certamente uma coincidência que os dois grandes choques políticos do ano – Brexit e a eleição de Trump – tenham ocorrido nos dois países que mais fervorosamente abraçaram a economia neoliberal.

 

A visão económica e geopolítica de Trump deve ser julgada com base neste contexto de desencanto e não com base num padrão de ideais económicos ou morais. Por outras palavras, o Trumpismo pode ser a solução para a crise do liberalismo e não um presságio para a sua desintegração.

 

Visto desta forma, o isolamento de Trump é uma forma populista de dizer que os Estados Unidos precisam de retirar-se de compromissos que não têm poder nem vontade de cumprir. A promessa de trabalhar com a Rússia para terminar com o conflito selvagem na Síria é sensata, mesmo que isso implique a vitória do regime de Bashar al-Assad. Afastar-se de uma forma pacífica das responsabilidades mundiais a que está exposto será o maior desafio de Trump.

 

O proteccionismo de Trump remonta às antigas tradições americanas. A economia norte-americana dos salários elevados e rica em empregos na manufactura fracassou com a globalização. Mas qual seria a forma de proteccionismo viável? O desafio será alcançar controlos mais restritos sem prejudicar a economia mundial ou inflamar as rivalidades nacionais ou os sentimentos racistas.

 

Trump prometeu também um programa de investimento em infra-estruturas – avaliado entre 800 mil milhões de dólares e um bilião de dólares – que será financiado através de obrigações, e um corte elevado nos impostos sobre as empresas. O objectivo é que ambas as medidas criem 25 milhões de novos postos de trabalho e assim impulsionem o crescimento. Isto, acompanhado pela promessa de manter os direitos sociais, representa uma forma moderna da política orçamental de Keynes (apesar de não ser identificada como tal). O seu mérito é ser um desafio à obsessão neoliberal de redução do défice e da dívida e da dependência do alívio quantitativo enquanto a única ferramenta – e actualmente esgotada – de gestão da procura.

 

À medida que Trump passa do populismo para a política, os liberais não devem afastar-se com repulsa e desespero mas envolver-se com o potencial positivo do Trumpismo. As suas propostas têm de ser interrogadas e refinadas e não rejeitadas como delírios ignorantes. A tarefa dos liberais é assegurar que o terceiro advento do liberalismo chega com o menor custo para os valores liberais. E vai haver custos. Esse é o significado do Brexit, da vitória de Trump e de qualquer vitória populista que venha a acontecer.

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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