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03 de Novembro de 2016 às 20:00

A diminuição dos retornos do comércio livre

O comércio livre pode reduzir os preços para os consumidores e aumentar os rendimentos reais para alguns trabalhadores. Mas muitas vezes o faz à custa de outros trabalhadores que são deslocados quando as empresas transferem os empregos para outras paragens.

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Na "Global Survey," na sua edição de Maio de 2010, a McKinsey & Company reportou que "os motores essenciais da globalização estão bem e recomendam-se". Em Abril de 2014, num relatório, foi ainda mais longe, declarando que "não estar ligado é ficar para trás".

Mas agora a McKinsey parece que mudou de tom. Num novo relatório ["Mais pobres do que os seus progenitores? O decréscimo ou a estagnação dos rendimentos em economias avançadas"], o McKinsey Global Institute afirma que os países desenvolvidos não devem esperar ganhos adicionais do processo de globalização. O crescimento dos rendimentos tem estado paralisado desde a crise financeira de 2008 e "mesmo um regresso a um forte crescimento do PIB pode não" inverter a tendência.

Especificamente, a McKinsey identifica que, desde 2005 até 2014, os rendimentos reais (ajustados à inflação) estagnaram ou caíram em 65%-70% dos agregados, o que representa 540 milhões de pessoas entre 25 economias desenvolvidas. Nos Estados Unidos da América, durante este período, 81% da população enfrentou a queda ou a estagnação dos rendimentos reais; em Itália, a 97% aconteceu o mesmo. Comparativamente, desde 1993 até 2005, os rendimentos reais das economias desenvolvidas mantiveram-se estagnados ou caíram em menos de 2% dos agregados familiares.

As transferências governamentais e as reduções dos impostos amenizaram alguns dos efeitos desta tendência, ao deixar as famílias com uma remuneração real adicional, especialmente em países com um Estado-Providência forte. Mas, mesmo com estas medidas, nalguns países mais de um quarto dos agregados familiares sofreram estagnação ou mesmo baixa de rendimento disponível entre 2005 e 2014.

Desde 2005 que a globalização nos mostrou ser uma faca de dois gumes, e até mesmo políticos conservadores no mundo inteiro já deixaram de ser seus fiéis defensores. Como disse recentemente o ex-primeiro-ministro francês Dominique de Villepin, "a globalização, por um lado, promove a cooperação; por outro, trouxe-nos exclusão mútua, isolamento e radicalização".

Nos EUA, Donald Trump conseguiu a nomeação como candidato presidencial pelo Partido Republicano com uma campanha focada na anti-imigração e anti-comércio livre. A base de apoio de Trump engoba eleitores brancos da classe trabalhadora que sentem que a globalização tem destruído as suas expectativas de segurança e de sucesso económico. Trump tem explicitamente recorrido aos preconceitos desse eleitorado e apelado ao "Americanism, not globalism." (americanismo, não globalismo).

A campanha do lado do "Leave" no Reino Unido para o referendo ao Brexit orquestrou uma campanha semelhante, e a xenofobia e o populismo étnico estão a renascer em todo o Ocidente. Parte da responsabilidade por isto vai para os governos ocidentais que, ignorando os efeitos desiguais do comércio livre, falharam na assistência aos "vencidos."

Certamente que o comércio livre pode reduzir os preços para os consumidores e aumentar os rendimentos reais para alguns trabalhadores. Mas muitas vezes o faz à custa de outros trabalhadores que são deslocados quando as empresas, competindo num palco internacional acirrado, transferem os empregos para outras paragens. A longo prazo, enquanto bastantes pessoas em alguns países beneficiaram, muitas outras perderam muito mais rendimento real do que alguma vez ganharam com importações de baixo custo.

Apenas alguns governos conseguiram gerir bem esta difícil troca, através de um adequado subsídio de desemprego e formação profissional, e promovendo novas e melhores oportunidades de emprego com melhor remuneração. E em todo o caso, estas medidas destinam-se apenas as deslocalizações do comércio dentro dos países. Elas não têm em conta poderes internacionais maiores em acção, especialmente aqueles que afectam países em desenvolvimento que não podem comportar programas de segurança social robustos.

Uma opção para atenuar os efeitos da deslocalização internacional da globalização está na "Ajuda ao Comércio" ("aid for trade"), que o economista da Universidade de Columbia e evangelista do livre comércio Jagdish Bhagwati propôs há mais de uma década. Bhagwati reconheceu que o comércio livre pode ser uma força disruptiva que requer mecanismos de defesa internacionais, especialmente para os países em desenvolvimento menos dinâmicos. Bhagwati pediu transferências financeiras a partir das economias mais avançadas para as economias em desenvolvimento para compensar as capacidades de produção e de exportação deslocadas (e as receitas fiscais perdidas), e para permitir que os países beneficiários reformulem essas capacidades para se tornarem mais competitivos.

Navegar a transição económica para a competitividade internacional não é fácil. Muitas vezes requer intervenção governamental para coordenar recursos, construir infra-estruturas e gerir a promoção dos projectos de exportações. Além disso, os decisores políticos devem encarar a vantagem comparativa de forma dinâmica, em vez de optarem pela tradicional análise de comparação estática ("antes e depois"). Competitividade internacional não tem apenas a ver com custos baixos, mas também com o controlo de qualidade e a satisfação do cliente, nenhum deles acontecendo da noite para o dia como que por magia. Assim, em muitos casos, são essenciais medidas para amortecer o impacto da transição.

Infelizmente, a nova geração de investimento e de acordos de comércio livre que os líderes da Europa e os Estados Unidos da América estão a promover hoje em dia - muitas vezes com exageradas promessas de benefícios económicos – não proporciona nada disso. Com o comércio global já significativamente liberto – e com rendimentos já estagnados ou em queda – a afirmação de que novos acordo de comércio livre vão aumentar os rendimentos, é, na melhor das hipóteses, dúbia.

Pelo contrário, no que toca aos países em desenvolvimento, os acordos previstos, como a Parceria Transpacífico, apresentam sérios riscos: a ausência de normas em matéria comercial fortalece a influência daqueles que procuram lucros financeiros, dos detentores de direitos de propriedade intelectual e das multinacionais face aos governos– todos os ingredientes para manter pressionadas as economias emergentes em vez de as ajudar a levantar.

Temos também as vítimas da globalização nos países desenvolvidos, onde a maioria das pessoas não vê ganhos de rendimento em mais de uma década. Mas se esta ausência de normas em matéria comercial for adoptada, em breve veremos um recuo, também, nos países desenvolvidos, desencadeando consequências políticas e económicas que dificilmente poderemos antecipar.

 

Jomo Kwame Sundaram é director-geral assistente e coordenador para o desenvolvimento económico e social na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e recebeu o prémio Wassily Leontief em 2007 pela promoção das Fronteiras do Pensamento Económico. Vladimir Popov é o investigador principal no "Central Economics and Mathematics Institute of the Russian Academy of Sciences" e autor de 12 livros sobre economia global.

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org 
Tradução: Rosa Castelo

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