Opinião
Um computador não é um electrodoméstico
Na ânsia de criticar o governo por tudo e por nada, a oposição tem lançado nestes últimos dias uma série de trocadilhos sobre as novas tecnologias, em particular no contexto da distribuição pelo governo de computadores com ligação à Internet.
Além do lado caricato, com Portas a chegar tardiamente aos gigas e aos bites e Marques Mendes a falar de software e programas, o que ele imagina serem coisas distintas, estes dois dirigentes consideram que estamos perante uma mera acção de propaganda, uma simples compra de votos, aliás repetidamente comparada com a célebre distribuição de electrodomésticos pelo não menos célebre Major.
É por estas e, por outras, que a oposição não levanta voo.
Brincar com as novas tecnologias pode ter piada, e é mesmo salutar como toda a ironia e humor o são, mas quando a brincadeira é transposta para o campo do debate político torna-se assunto sério, revelador da ignorância de quem profere tais dislates. Um computador não é um electrodoméstico. Computadores ligados à Internet não são um mero “gadget” mundano, mas poderosas máquinas de ligação ao mundo. Que abrem as portas do conhecimento e são imprescindíveis à actividade profissional qualquer que ela seja. Ninguém pode hoje ser competente, em nenhum domínio, se não estiver conectado à rede. Viver sem Internet é uma forma de analfabetismo. É claro que se pode ser analfabeto e uma excelente pessoa e mesmo muito bom a fazer alguma coisa. Mas trata-se de casos isolados e não da regra. A conectividade é o aeiou dos nossos dias.
A campanha ideológica contra a Internet inscreve-se assim numa demagogia antitécnica, iniciada aliás com Platão, que alertava para os perigos da invenção da escrita. Alerta que felizmente não teve grandes consequências pois de outro modo a sua obra e personalidade não seriam hoje conhecidas.
Mas esta demagogia antitécnica, além de constituir uma perda de tempo e uma frívola persistência na sempre perdida causa da resistência ao novo, representa no campo político um sintoma de atraso cultural, uma inadaptação ao mundo contemporâneo que não pode deixar de levantar as maiores reservas e preocupações. Como pode um político pretender ser ele o mais capaz para governar o país, quando revela nada entender do mundo em que vive?
Um computador ligado à Internet significa um acesso ilimitado a uma vasta compilação de dados e uma descomunal enciclopédia. Mas é mais do que isso. É uma nova forma de comunicação, de gestão da informação, de aprendizagem em rede, com potencialidades infinitas de cooperação e sinergia.
O acesso generalizado a todos os tipos de dados e programas vem alterar significativamente o contexto de discriminação económica e social que sempre esteve presente na partilha do saber. Hoje um adolescente e um professor universitário utilizam as mesmas ferramentas e podem consultar os mesmos estudos. O conhecimento passa a estar não só disponível a (quase) todos, como aberto a (quase) toda a manipulação e aperfeiçoamento em tempo real. A novidade e a inovação, que sempre foram vistos como uma projecção no futuro, integram agora a dinâmica do instante e do presente. A expansão acelerada do saber é a consequência prática.
As implicações na educação são também evidentes.
Todos sabemos como a evolução é lenta, mas a adaptação é rápida. Enquanto estrutura essencialmente institucional, a educação é bastante conservadora e resistente à inovação. Mas sob a forte pressão ambiental, imposta pela dinâmica do saber, da experimentação, da criatividade e das novas necessidades sociais, culturais e económicas, a educação não escapa a permanentes movimentos adaptativos. A escola clássica, baseada na especialização dos saberes vai perdendo centralidade e exclusividade perante a panóplia de tecnologias disponíveis para pesquisa, processamento e transmissão da informação e do conhecimento. O conhecimento chega-nos hoje de todos os lados e não é já o produto excelso e exclusivo da academia. Neste contexto, os indivíduos tornam-se permeáveis à diversidade e mais capazes de se adaptarem à inovação. Na perspectiva genérica da sociedade, mais produtivos portanto.
Da mesma forma, a Internet não pode ser simplesmente vista como um novo media, mas precisamente como um pós-media. Ao contrário da televisão, cuja comunicação é de um para todos, ou do telefone, que é de um para um, na Internet a comunicação é de todos para todos, sem mediação. É por isso um meio radicalmente liberal, diria mesmo libertário, que permite aos indivíduos exprimirem sem controlo ou censura as suas ideias e visões do mundo. E se isso causa alguns ligeiros danos colaterais, os benefícios, no aumento da inteligência e da criatividade globais, são inquestionáveis. Talvez seja isto que mete tanto medo a quem fala muito de liberalismo mas teme acima de tudo a liberdade dos outros.
Assim, brincar com a Internet, ridicularizar a distribuição de computadores, equiparando-os a uma “batedeira eléctrica”, pode ser muito engraçado e alimentar o chorrilho de piadinhas e deixas que os deputados tanto prezam, mas só revela o enorme atraso de uma parte significativa da nossa classe política.