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12 de Setembro de 2001 às 19:00

«Sectores excluídos»

Foi publicado, no dia 9 de Agosto, o diploma legal que transpõe para o nosso ordenamento a Directiva 93/38/CEE do Conselho, referente à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações.

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I. Foi publicado, no passado dia 9 de Agosto, o diploma legal que transpõe para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, referente à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações, comummente designada por «Directiva Sectores Excluídos»1.

II. Sendo ainda cedo para se aquilatar devidamente da bondade do diploma de transposição, o Decreto-Lei n.º 223/2001, de 9 de Agosto2, cumpre, no entanto, atentar a importância capital de que se reveste esta legislação para o universo dos operadores portugueses daqueles sectores, assinalar alguns dos aspectos que, em nossa opinião, mais impacto poderão vir a ter no desenvolvimento das suas actividades.  

III. Importa, a título de enquadramento, relembrar que os referidos quatro sectores foram excluídos do âmbito objectivo de aplicação (e daí a designação por que vulgarmente é conhecida a directiva em apreço – «Directiva Sectores Excluídos») das directivas chamadas «clássicas», ou seja, a «Directiva Empreitadas», a «Directiva Fornecimentos» e a «Directiva Serviços»3, sobretudo, «pelo facto de as entidades que exploram esses serviços estarem sujeitas ora ao direito público ora ao direito privado».4

Em 1998, a «Directiva Sectores Excluídos» veio a ser alterada pela Directiva 98/4/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro, na sequência das negociações multilaterais do «Uruguay Round», findas as quais o Conselho Europeu aprovou o denominado «Acordo sobre Contratos Públicos», que estabelecia condições globalmente mais favoráveis para os proponentes de países terceiros, do que aquelas que haviam sido fixadas para os proponentes dos Estados-membros, no âmbito da Directiva Sectores Excluídos e que visou, justamente, eliminar ou atenuar tais vantagens.5

IV. A inegável relevância da Directiva Sectores Excluídos, aliada à controvérsia que a interpretação de muitas das suas disposições sempre motivou, gerou grande expectativa nos potenciais destinatários nacionais e, bem assim, na comunidade jurídica em geral, quanto ao diploma que a viria transpor.

Malogradamente, devem desenganar-se todos aqueles que, como nós, esperavam que tais controvérsias fossem dissipadas com a publicação do sobredito diploma de transposição.

Na verdade, e salvo o devido respeito, o legislador nacional pouco mais fez do que transcrever a directiva a que aludimos e, por conseguinte, as citadas dúvidas de interpretação de alguns normativos deste diploma comunitário mantêm-se no diploma nacional de transposição. Pensamos, pois, que o legislador nacional, sem desvirtuar a directiva, poderia ter ido mais longe; no mínimo, poderia ter densificado, para nosso esclarecimento, matérias tão importantes como, por exemplo, o alcance do âmbito subjectivo «específico» de aplicação ou o regime do novel sistema de qualificação.

Recorde-se, neste plano, que a operação de transposição de uma directiva comunitária está longe de se esgotar numa mera transcrição, como sucedeu no caso vertente. Com efeito, de acordo com a doutrina mais autorizada na matéria, uma vez fixado o resultado a atingir pelos estados-membros destinatários de uma directiva, o Tratado deixa-lhes a liberdade de providenciarem quanto aos meios e quanto à forma das medidas a adoptar no quadro nacional, para que a finalidade ou o resultado fixado naquele acto comunitário seja plenamente atingido, liberdade de conformação essa que o nosso legislador parece ter desaproveitado.

V. Mas passemos à apresentação de alguns dos traços essenciais deste novo diploma, ainda que de forma necessariamente breve.

O DL n.º 223/2001 é aplicável, no que tange à contratação de empreitadas e à aquisição de bens e serviços, ao Estado6, aos institutos públicos, às associações públicas, às autarquias locais e a outras entidades sujeitas a tutela administrativa, às regiões autónomas, às associações de que façam parte autarquias locais ou outras pessoas colectivas de direito público, às empresas públicas, às sociedades anónimas de capitais maioritária ou exclusivamente públicos, às concessionárias de serviços públicos e ainda às entidades privadas que sejam objecto de uma influência dominante por parte de uma das entidades referidas7, cuja actividade seja financiada maioritariamente também por uma daquelas entidades já citadas e ainda nos casos em que os entes privados gozem de direitos especiais ou exclusivos decorrentes de uma autorização concedida por uma entidade competente, através de qualquer disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, cujo efeito consista em lhes reservar o exercício daquelas actividades. Em todos estes casos, porém, se e só se tais entidades, «coloquem à disposição, explorem ou alimentem redes fixas de prestação de serviços ao público no domínio da produção, transporte ou distribuição de água potável, electricidade, gás ou calor».8 9

Em face do extenso rol de entidades contempladas por este diploma, julgamos que poucos serão os operadores dos chamados sectores excluídos que se possam desinteressar desta nova lei. Mas se o âmbito subjectivo geral de aplicação do diploma sub iudice não nos merece grandes reservas, já o mesmo não nos é permitido dizer quanto ao âmbito subjectivo «específico» de aplicação, que, seguramente, motivará as maiores incertezas.  

Neste plano, impõe-se a referência ao facto do legislador nacional não ter estabelecido, diversamente do caminho trilhado pelo legislador comunitário, uma excepção, não dispicienda, para as situações em que as citadas entidades «se encontrem directamente sujeitas ao jogo da concorrência em mercados cujo acesso não seja limitado10», com ressalva do sector dos transportes e das telecomunicações e, ainda assim, em casos contados. Tal excepção teria o mérito de agilizar a actividade de muitas das entidades que, assim, se vêem na contingência de ter de seguir procedimentos pré-contratuais quando, porventura, já operam em mercados liberalizados. Naturalmente que, nestes casos, as entidades adjudicantes nacionais poderão perder competitividade em relação a concorrentes de outros estados-membros, cujo legislador nacional não descurou a possibilidade que a Directiva Sectores Excluídos confere nesta matéria. 

VI. Os procedimentos adjudicatórios que as citadas entidades adjudicantes podem livremente adoptar são o concurso público, o concurso limitado e o processo por negociação, nos termos enunciados no diploma em análise. Subsidiariamente, aplicar-se-á a legislação nacional atinente às empreitadas de obras públicas e à aquisição de bens e serviços, respectivamente, o DL n.º 59/99, de 2 de Março, e o DL n.º 197/99, de 8 de Junho, conforme o caso. 

VII. Merecem igualmente destaque os diversos limiares pecuniários de aplicação do diploma em apreço, a partir dos quais os sobreditos procedimentos pré-contratuais devem ser adoptados pelas entidades adjudicantes, sob pena dos contratos celebrados enfermarem de nulidade.

Neste ponto não podemos deixar de referir a controversa previsão normativa ínsita no n.º 5 do art. 7º do diploma de transposição, que se reporta à celebração de contratos de valor inferior ao dos citados limiares. Parece-nos, ainda que com algumas reservas, que em tais situações as entidades adjudicantes sujeitas, simultaneamente, ao regime deste diploma e ao regime do DL n.º 59/99 e/ou do DL n.º 197/99, devem optar pelo regime que considerem mais favorável11, e que somente as entidades não contempladas pelo âmbito subjectivo de aplicação do regime das empreitadas e das aquisições de bens e serviços, ou seja, as entidades adjudicantes apenas sujeitas ao regime do DL n.º 223/2001, estarão isentas de recorrer a quaisquer dos procedimentos pré-contratuais referidos.   

VIII. Um outro aspecto merecedor de realce, em virtude das vantagens que aparentemente encerra, é o designado «sistema de qualificação» enunciado no art. 33º do DL n.º 223/2001. Mas assalta-nos esta dúvida: que vantagem efectiva haverá na instituição de um sistema de qualificação, que possibilita que as entidades adjudicantes passem a dispor de uma «carteira» de proponentes para contratos futuros, se essas mesmas entidades podem livremente recorrer a um processo por negociação para cada um desses contratos? É que a contrapartida de uma eventual dispensa de publicação do Anúncio12, com o consequente encurtamento do prazo do respectivo procedimento pré-contratual, que o sistema de qualificação parece conferir, quedará em muitos casos prejudicada pela limitação de mercado potencial que a existência de uma tal «carteira» implicará. Ou será que a entidade adjudicante não está adstrita a contratar com os proponentes que tem em «carteira», a despeito de se tratar de algum dos contratos em razão dos quais instituiu um sistema de qualificação?   

IX. Uma derradeira palavra se impõe quanto à oportunidade deste novo diploma: estando em vias de ser publicada uma outra directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, por proposta da Comissão, sobre a mesma matéria da Directiva Sectores Excluídos, que agora foi transposta, visando, primordialmente, «simplificar o quadro jurídico existente através de uma clarificação das disposições obscuras ou complexas»13 (da Directiva 93/38/CEE), não se justificaria que o legislador nacional aguardasse que este acto comunitário visse a luz do dia, evitando-se uma mais que certa alteração do DL n.º 223/2001 aquando da transposição desta nova directiva? É que embora já estejamos habituados à proliferação de diplomas legais sobre a mesma matéria em curtos espaços de tempo, o que sempre gera insegurança e desnorte jurídicos, temos dificuldades na aceitação de uma tal opção na situação vertente, sobretudo em virtude de estar em causa uma intervenção legislativa em sectores estratégicos para o nosso país, que nos suscita grandes reparos.

Notas:  

1 Refira-se que o prazo limite de transposição da citada Directiva foi fixado, para a República Portuguesa e para República Helénica, até 1 de Janeiro de 1998.

2 Este diploma só entra em vigor no dia 7 de Dezembro de 2001.

3 Respectivamente, a Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, transposta pelo DL n.º 59/99, de 2 de Março, a Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, e a Directiva 92/50/93, do Conselho, de 18 de Junho de 1992, ambas alteradas pela Directiva 97/52/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro, já transpostas pelo DL n.º 197/99, de 8 de Junho.

4 Cfr. o Considerando n.º 8 da Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993.

5 As alterações decorrentes desta Directiva deveriam ter sido transpostas para o nosso ordenamento jurídico até ao dia 16 de Fevereiro de 2000.

6 Leia-se, à Administração Directa do Estado.

7 Afigura-se-nos que, por lapso, o legislador não indicou que entidades é que podem exercer essa influência dominante e daí que tenhamos inferido tratar-se de qualquer uma daquelas que foram referidas. No que respeita ao conceito de influência dominante remetemos para o próprio diploma que, neste ponto, é esclarecedor.

8 Cfr. o disposto no n.º 1 do art. 3º do DL n.º 223/2001, de 9 de Agosto, que, concatenado com o n.º 2 do mesmo preceito, estipula o âmbito subjectivo “específico” de aplicação deste diploma. Note-se que no n.º 2 deste normativo estabelece algumas excepções quanto às sociedades anónimas de capitais maioritariamente públicos.

9 O âmbito subjectivo “específico” relativo aos sectores dos transportes e das telecomunicações vem tratado nos arts. 5º e 6º do diploma de transposição.

10 Cfr. o preceituado no Considerando n.º 13 da Directiva Sectores Excluídos.

11 Ainda que, em qualquer caso, sem dependência da publicação de um Anúncio no JOCE e das comunicações à Comissão Europeia.

12 O diploma de transposição não é, também neste ponto, esclarecedor, quanto à dispensa de publicitação de um Anúncio, quando está em causa um concurso limitado ou um processo por negociação no âmbito de um sistema de qualificação.

13 Cfr. a “Exposição de Motivos” da proposta de Directiva apresentada pela Comissão em 10 de Maio de 2000.

Por Pedro Melo, advogado  Pena, Machete, Botelho Moniz, Nobre Guedes, Ruiz & Associados – Sociedade de Advogados

 

Artigo publicado no Jornal de Negócios em 13 de Outubro de 2001

 

 

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