Opinião
Saramago e a máquina de cena
Um frio de morte; no Teatro Nacional São João, no Porto, a "máquina de cena" do encenador João Brites fabrica nevoeiro húmido que, a partir do palco, contamina a sala. Não é "sugestão" nem "faz de conta" - nas primeiras filas da plateia, os plásticos...
Um frio de morte; no Teatro Nacional São João, no Porto, a "máquina de cena" do encenador João Brites fabrica nevoeiro húmido que, a partir do palco, contamina a sala. Não é "sugestão" nem "faz de conta" - nas primeiras filas da plateia, os plásticos previamente distribuidos aos espectadores não chegam para os proteger da "quarta parede" que lá não está, nem dos excessos "quid pro quo" das cenas desta Paixão. Primeiro, os corpos em cena passam a vultos, e a luminescência difusa esbate o contraste. Depois, neste desconforto linear, ficamos a sós com o som. Há luz, mas não se vê: são as palavras de "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago, numa co-produção d´"O Bando" com o Teatro Nacional São João, que haveria ainda de visitar o Grande Auditório da Culturgest e o Teatro da Trindade, em Lisboa, e, claro, a sede da Companhia, em Palmela, que, nesse ano de 2004, celebrou 30 anos.
Este "inferno molhado" era o "mal branco" de José Saramago (ex)posto em cena com a dimensão e escala de um Teatro Nacional; a cegueira traz o temor, depois a desconfiança e, finalmente, o retrocesso até aos dias do primado do medo. A violência autofágica sustenta esta anarquia, "ver" é maior maldição que "não ver"; uma imponente rampa é o meridiano de um cenário de inevitável queda até ao vórtice, o poço da morte, que ocupa o centro de cena. A tragédia eminente da perenidade da vida, a fragilidade das convicções fragilmente alicerçadas na percepção, a volatilidade dos valores universais questionados na obra de Saramago eram exaltados na delicadeza crua da nossa língua; estavam os homens em frente aos homens e, para mim, por causa do Teatro, tinha chegado a hora de ir ler José Saramago. Não me parecia que fosse demasiado tarde.
"Se podes olhar vê, se podes ver repara"*. Também vi com "vaidade-pátria" a "mulher do médico" interpretada por Julianne Moore no filme do nosso irmão transatlântico, o Oscar winner Fernando Meirelles; mas, como diz Manoel de Oliveira, o "Cinema é o espelho da vida e o Teatro é a Vida" - e se calhar por isso, quando caiu a noite na passada sexta-feira, foi com "vaidade-língua" que do Teatro me lembrei.
* in "Ensaio Sobre a Cegueira" de José Saramago.
Este "inferno molhado" era o "mal branco" de José Saramago (ex)posto em cena com a dimensão e escala de um Teatro Nacional; a cegueira traz o temor, depois a desconfiança e, finalmente, o retrocesso até aos dias do primado do medo. A violência autofágica sustenta esta anarquia, "ver" é maior maldição que "não ver"; uma imponente rampa é o meridiano de um cenário de inevitável queda até ao vórtice, o poço da morte, que ocupa o centro de cena. A tragédia eminente da perenidade da vida, a fragilidade das convicções fragilmente alicerçadas na percepção, a volatilidade dos valores universais questionados na obra de Saramago eram exaltados na delicadeza crua da nossa língua; estavam os homens em frente aos homens e, para mim, por causa do Teatro, tinha chegado a hora de ir ler José Saramago. Não me parecia que fosse demasiado tarde.
* in "Ensaio Sobre a Cegueira" de José Saramago.