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17 de Julho de 2012 às 23:30

"Douceur de vivre"

Em Dezembro de 1978, era eu embaixador de Portugal junto do Conselho da Europa em Estrasburgo, recebi como todos os meses uma carta do Senhor Jaime Martins de Matos, contínuo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e meu procurador em Lisboa, que acabava, como era costume dele, com um parágrafo de reflexão sobre novidades do Palácio das Necessidades e o estado da Pátria.

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Em Dezembro de 1978, era eu embaixador de Portugal junto do Conselho da Europa em Estrasburgo, recebi como todos os meses uma carta do Senhor Jaime Martins de Matos, contínuo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e meu procurador em Lisboa, que acabava, como era costume dele, com um parágrafo de reflexão sobre novidades do Palácio das Necessidades e o estado da Pátria.

"Foi nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros o Embaixador João Carlos Lopes Cardoso de Freitas Cruz. É Secretário-Geral o Embaixador Gonçalo Luís Maravilhas Correia Caldeira Coelho. São dois homens denodados, inteligentes e honestos. Mas já não há Império".

(Poucos políticos da época tinham a lucidez do Matos. Achavam que se não houvesse chatices é porque estava tudo bem. Entende-se. Guindados à ribalta pelo 25 de Abril, inebriados pela tarefa de construir um regime novo e pelos conchegos do poder, não percebiam que lhes tinha calhado entrar na história na altura em que Portugal saía dela).

Peripécias da vida portuguesa contemporânea lembram-me de vez em quando esse fim de carta, mas recentemente é a Europa que a traz à mente. Não por causa da perda, mais antiga, dos seus outros impérios, mas por causa da perda do que parecia ser um jeito raro de conciliar ricos e pobres. As coisas estão mal e a faca vai até ao osso.

Quando dois acontecimentos espectaculares – a queda do muro de Berlim, em 1989, e o hara-kiri da União Soviética em 1991 – convenceram toda a gente salvo fanáticos empedernidos de que o comunismo de Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao-Tse-Tung tinha perdido a Guerra Fria e estava acabado, muitos julgaram que o capitalismo tinha ganho. Ganhou, com efeito, mas passou a ter de mostrar o jogo e parte do que se tem visto, sobretudo desde 2008, assusta. Descobrimos que mais do que as consciências de cada um, variadas fés em Deus ou vergonha dos vizinhos, o que mantivera o pessoal financeiro europeu e norte-americano dentro da lei fora o terror salutar do comunismo soviético. Sumido esse terror tem sido um vê se te avias: desde a roubalheira das "subprimes" em 2008 (ganância de bancos americanos contra pobres americanos) passando por várias grandes aldrabices dos dois lados do Atlântico facilitadas por falta de controles até à falsificação criminosa das taxas Libor que deu golpe fundo na reputação secular de honradez da praça de Londres, cujos agentes foram apanhados a portarem-se como vigaristas em vez de se portarem como cavalheiros.

Estamos em maus lençóis. Se no mundo da finança se generalizasse a tolerância de desonestidade (mantendo-se além disso proventos escandalosos), as classes média e baixa, tocadas pelo desemprego, rabeariam cada vez mais. Esquecendo a História, quereriam acreditar de novo em amanhãs que cantem. Já se sabe o que tal dá; iria ser muito incómodo. E a "douceur de vivre" a que a Revolução Francesa pusera termo e estávamos a ressuscitar na Europa Ocidental no terceiro quartel do século XX tornaria a ficar mais longe.

Embaixador

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