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Opinião
30 de Agosto de 2006 às 12:54

Prosa com endereço certo

Sempre escrevi para pessoas adultas, desejavelmente inteligentes, cultas e informadas. Reconhecendo, embora, a modéstia dos meus objectivos, e admitindo, até agora, ter sido beneficiado, sei não haver regra sem excepção: também me tocam no batente alguns

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Sempre escrevi para pessoas adultas, desejavelmente inteligentes, cultas e informadas. Reconhecendo, embora, a modéstia dos meus objectivos, e admitindo, até agora, ter sido beneficiado, sei não haver regra sem excepção: também me tocam no batente alguns visitantes com declaradas evanescências intelectuais e evidentes amolgadelas de carácter.

Por doentia natureza, encapuçam-se no anonimato, sem conseguirem dissimular um atroz fanatismo reaccionário, que vai ao ponto de chamarem «comunistas» a quem dissente do que julgam «pensar». Divirto-me um pouco com as tonterias, e mais ainda porque os irrito. Adianto: sem estes esquizofrénicos correspondentes, a minha vida seria mais chata.

Aquilino Ribeiro, de quem fui amigo, costumava dizer: «Todo aquele que quer ser lido e escutado tem de escrever e falar com endereço». Procuro seguir a norma. Independente de partidos, a minha liberdade não se conclui na assinatura do que escrevo: continua-se no comportamento ético e na exigência de não ceder a pressões, sem abdicar das convicções que me acompanham desde a juventude. Pertenço a uma Esquerda sem emblema.

Gosto muito da crítica: de exercê-la e de ser dela objecto. Durante um longo percurso de vida em voz alta, escrevi, certamente, textos medíocres e injustos. Moralmente reprováveis, penso que não. Intransigente para os falhos de carácter, nunca receei os riscos daí advenientes. Gosto de bons jornalistas, de bons escritores; detesto o marquetingue que vende fruta bichada; desprezo oponentes mascarados, prezo as amizades, sou ferreamente fiel ao grupo, à comunidade, e a um par de ideias que alimento sobre Portugal. Ah!, já me esquecia, para o que der e vier, almoço, todas as sextas-feiras (hoje é dia) no Solar dos Presuntos, com Mário Zambujal, Eugénio Alves, Fernando Dacosta, José Manuel Saraiva, designamo-nos por Os Empatados da Vida, porque não somos vencedores nem vencidos. Um dos nossos, Mário Ventura, morreu há dois meses, e deixou-nos a dor irreparável da perda. Era um homem de bem, importante escritor e jornalista, e meu camarada desde há mais de quarenta anos.

Um dos meus opositores anónimos teve a desfaçatez de afirmar que sou «rico» e «estalinista». Aprendi que as relações humanas são sempre complexas, e que a ignorância é tão arrojada como triste por solitária. Devo dizer que não me vejo como o epítome de coisa alguma e, simultaneamente, sou o resultado de tudo quanto aprendi: nos livros, nas viagens, com os amigos, correspondendo aos apelos da minha consciência, participando nas batalhas políticas do meu tempo, actuando na clandestinidade contra o fascismo - que me fez perder tempo e os anos mais estelares da juventude.

Essa de «estalinista», de «rico», e de estar a soldo de tenebrosas forças do mal só provoca risos. Coloco-me, isso sim, num ângulo de visão oposto ao da maioria. Eis porque desconsidero os comentadores do óbvio, seguidores dos ventos e das marés favoráveis; e dos editorialistas sem perigo. É raro estar de acordo com o Vasco Pulido Valente; todavia, a circunstância de ele nadar contra a corrente das vulgaridades e o facto de escrever num português de lei tornam os seus artigos leitura estimulante. Ele tem tinetas e birras, difíceis de compreender e de administrar. Não as oculta, nem dissimula a soberba com que observa a pátria. Mas é o admirável autor de «O Poder e o Povo». Aqueles que o «defenderam», na quezília sobre o fascismo português, deixaram adivinhar uma menoridade mental e cultural que o próprio Pulido Valente metodicamente desdenha.

Sei do que falo. Trabalhámos, anos de 60, na revista «Almanaque», que tinha uma Redacção imparável: José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, Alexandre O’Neill, José Cutileiro; e ilustradores como João Abel Manta, Guilherme Casquilho, Sebastião Rodrigues, Pilo da Silva. O Vasco era o mais novo. Escreveu, entre outros, um texto formidável, «The Black Horse Square», sobre o Terreiro do Paço, e lançava ácido sulfúrico por tudo o que era bonzo nas artes, nas letras, na universidade e na política. Jamais perdeu o sainete. Não tenta aproximar Oxford, geográfica e culturalmente, de Lisboa. Mas gosta de Portugal, e zurze-o para melhor o amar? fazendo caretas.

O fascismo português deixou esquírolas na cabeça de muitos. O fascismo e a Inquisição. É pena; mas é lá com eles: andam de antolhos, desconhecendo, por contumaz ignorância, que o método se sobrepõe à pessoa, e que o mundo não é a preto e branco. Há, nesta triste gente, uma falsa euforia: a droga da iliteracia obstinada tornou-a naquilo que é. A net serve como o divã no psiquiatra. Emoldurando-se no silêncio denso e inquietante do gabinete de sombras, atrelam as suas pequeninas frustrações a um computador que, presumem, mas presumem mal, as salva de mágoas e desesperos.

Chamar «comunistas» a quem desacorda é pecha antiga. Marca d’água do fascismo santacombadense, que, pelos vistos, permanece. Mas não é insulto: é acusação, bufaria, delação, velhacaria dos sem carácter, dos desprovidos de argumentos sérios. Nos dias de hoje, como nos do fascismo, a aleivosia pode ser perigosa; porém, não é indigna para o denunciado. Pertence ao livro de linhagem da Resistência. Resistência à brutalidade fascista, ao obscurantismo, à superstição, à corrupção na política e na Imprensa, ao indiferentismo, à abulia, à conivência com o terror. Resistência de que fizeram parte Álvaro Cunhal e Gonçalo Ribeiro Telles; Mário Soares e Francisco Sousa Tavares; Nuno Rodrigues dos Santos e Sophia de Mello Breyner; Francisco Salgado Zenha e Carlos Carvalhas; Natália Correia e Manuel Mendes; António Dias Lourenço e Carlos de Oliveira; Manuel Serra e João Varela Gomes, o padre Felicidade Alves e Jaime Serra. São milhares e milhares. Serão sempre os meus camaradas, os meus companheiros.

APOSTILA - Dilecto: vale a pena deslocar-se ao belo edifício do «Diário de Notícias», na Avenida da Liberdade, em Lisboa, e apreciar a exposição documental sobre António Rodrigues Sampaio, o Sampaio da Revolução, que foi, certamente, o maior jornalista português do século XIX. «Soldado intrépido e amigo incorruptível da liberdade» [Camilo Castelo Branco, dixit], nada mais desejou do que viver numa pátria «onde o homem fosse, sobretudo, cidadão». Entre os textos e volumes que sobre Rodrigues Sampaio foram escritos, merece, como acepipe, conhecer o artigo que Ramalho Ortigão lhe consagrou n’«As Farpas», e o texto de Camilo em «Memórias do Cárcere». Jornalista, político, governante, par do reino, morreu como nasceu e viveu: pobre. Desloque-se ao «Diário de Notícias», Dilecto, ao menos para homenagear um português incomum. A exposição está aberta de segunda a sexta-feira, das 11 às 20 horas. Entrada livre.

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