Opinião
Outra aposta falhada na Palestina
Incapaz de contestar a legitimidade do Hamas em matéria de lisura administrativa e combate à corrupção, o sucessor de Arafat tem tentado preservar poderes sobre as forças de segurança e impor-se, sem sucesso, como mediador face ao boicote ocidental e isra
Chegará domingo e a derradeira tentativa de Mahmoud Abbas para salvaguardar a sua autoridade presidencial claudicará numa confusão de propostas, documentos desencontrados, compromissos vagos e confrontos armados mortais que, a prazo, acabarão muito provavelmente por redundar na sua demissão.
Incapaz de contestar a legitimidade do Hamas em matéria de lisura administrativa e combate à corrupção, o sucessor de Arafat tem tentado preservar poderes sobre as forças de segurança e impor-se, sem sucesso, como mediador face ao boicote ocidental e israelita ao governo dos islamitas.
Valeu-se este mês da ameaça de convocação de um referendo para obviar à recusa do Hamas em reconhecer o estado judaico, mas basta considerar o documento que Abbas se propõe invocar para escrutinar a vontade dos palestinianos em negociar com Israel para desmascarar o bluff.
O chamado Documento de Reconciliação Nacional tem na sua origem uma primeira jogada para pôr Abbas em causa que teve lugar em Janeiro, pouco antes da bancarrota eleitoral da Fatah, quando as autoridades israelitas acederam a que Marwan Barghouti concedesse uma entrevista na penitenciária de Haridim.
Barghouti, líder das brigadas militares da Fatah, apelou, então, em declarações às cadeias televisivas Al Jazeera e Al Arabiya, à formação de um governo de salvação nacional com a participação de todas as forças políticas, incluindo o Hamas.
Sem se comprometer com Abbas e a liderança da Fatah em Gaza e na Cisjordânia, Barghouti - que purga desde 2004 cinco penas de prisão perpétua e se apresenta como líder alternativo às chefias tradicionais da OLP - reivindicou como plataforma de unidade política a criação de um estado palestiniano com capital em Jerusalém Oriental, no respeito pelas fronteiras anteriores à guerra de 1967, e defendeu o direito de retorno de mais de quatro milhões de refugiados.
Consumado o colapso da Fatah, Barghouti, na qualidade de secretário-geral da Fatah, surgiu de novo entre os signatários do Documento dos Presos de Haridim divulgado este mês, a par de outros detidos como o dirigente do Hamas Abdel Khalek Al Natsheh, Abdel Rahim Malouh, por parte da Frente Popular para a Libertação da Palestina, Mustafa Badarneh, pela Frente Democrática para a Libertação da Palestina e o xeique Sheikh Bassam AL Sa’di, da Jihad Islâmica.
A proposta dos presos de Haridim, que o presidente palestiniano sugere levar a referendo, retoma o plano avançado pela Liga Árabe em 2002, que toma por base em matéria de acertos territoriais a Resolução 242 da ONU, obrigando Israel à retirada dos territórios ocupados na guerra de 1967.
No essencial propõe a criação de um Conselho Nacional que recupere em detrimento da Fatah a legitimidade perdida da Organização para a Libertação da Palestina, não reconhece explicitamente a existência do estado de Israel, reitera o direito de retorno e indemnização de mais de quatro milhões de refugiados, sem especificar, no entanto, se está em causa a sua eventual residência na totalidade dos territórios do Mandato Britânico.
Os líderes palestinianos no cativeiro apelam, ainda, à instituição de uma Frente de Resistência para coordenar politicamente acções militares nos territórios ocupados. É o consenso mínimo de facções nacionalistas e islamitas para salvaguardar um programa que permita manter a Autoridade Palestiniana como parceiro negocial de Israel e ante a comunidade internacional antes que se dilacere numa guerra civil.
Israel ganha tempo
Do lado israelita tudo isto é visto como uma oportunidade única para roubar definitivamente qualquer crédito à Autoridade Palestiniana. Não por acaso o estado israelita acedeu este mês à entrega de armas ligeiras à guarda pessoal do presidente Habbas, não condenou à partida a ideia de um referendo sobre eventuais fronteiras de um estado palestiniano, mas, tão pouco, renegou da política de definição unilateral de ocupação territorial na Cisjordânia.
A estratégia do governo israelita é clara: impor fronteiras unilaterais na Cisjordânia, anexando os colonatos de Ariel, a sul de Nablus, Maale Adoumin, a leste de Jerusalém, Etzion, a sul de Belém, além de núcleos de colonização junto a Ramallah, Nablus e Hebron, congregando, assim, a maioria dos mais de 200 mil residentes judeus nos territórios ocupados.
O objectivo estratégico israelita, independentemente da presença militar na Cisjordânia, pode resumir-se em termos de consagração da separação unilateral e é tão equívoco que se arroga ignorar o destino da minoria árabe em Israel, que em 2025 representará 22 por cento da população do estado hebraico, e a própria viabilidade económica de um estado independente palestiniano.
Segura do apoio de Washington, certa de que os equívocos e desacertos árabes obstam a iniciativas diplomáticas exequíveis, Israel conforta-se na ideia de que a imposição de fronteiras acabará por ser aceite como uma realidade no terreno e de que um eventual referendo palestiniano apenas agudizará o confronto entre islamitas e nacionalistas, sem que o Hamas se veja obrigado a reconhecer explicitamente o estado hebraico.
O braço de ferro entre a Fatah e o Hamas, seja na frente diplomática como ficou demonstrado esta semana na conferência ministerial, em Kuala Lumpur, do Movimento dos Não Alinhados, passando pela impotência do governo islamita em pôr cobro aos ataques da Jihad Islâmica a partir de Gaza e pela incapacidade em pagar os vencimentos dos seus 165 mil funcionários, alimentam nos círculos políticos e militares israelitas a ideia de que o colapso ou paralisia da Autoridade Palestiniana lhe dão tempo a ganhar para impor fronteiras unilaterais.
Daqui por uma semana, depois do Hamas pôr em xeque o referendo proposto por Abbas, recusando a sua realização ou negando-lhe qualquer significado em termos de reconhecimento do estado hebraico, será relembrado em Telavive e Jerusalém o acerto do dito do antigo chefe da diplomacia israelita Abba Eban que, nas conversações falhadas de 1973, sofismava que «os árabes nunca perdem uma oportunidade de perderem uma oportunidade».
Dramático e triste é que do lado israelita tal dito faça, também, todo o sentido porque a tentativa de compromisso interno entre facções palestinianas, condenada à partida devido aos objectivos radicalmente incompatíveis do Hamas e da Fatah, está a ser apenas aproveitada para demonstrar a ausência de parceiro negocial.
O consolo de Israel de que mais algum tempo será ganho para impor-se pela força no terreno é um desacerto a prazo porque a ocupação de territórios palestinianos não faz sentido estratégico, o traçado de fronteiras só será validado por via negocial, e o próprio ente democrático do estado israelita está condenado por negar direitos aos cidadãos árabes.
Artigos relacionados:
O crescente verde na Palestina , 25 de Janeiro de 2006
O Roteiro da Guerra no Médio Oriente, 11 de Janeiro de 2006