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Os limites do estoicismo social

O Governo teve orelhas moucas e insiste em sobrecarregar quem alquebrado já está. Opta pela pauperização da classe média e condena a uma indigência mais generalizada, beneficiando de novo muito poucos e sem consequências macro que se vislumbrem.

1. Há um clamor de indignação que perpassa nas redes sociais. Porque há uma fronteira que separa o estoicismo do povo da sua rebelião: o respeito por quem está a resistir e o sentido dos sacrifícios. Esse limiar foi ultrapassado: os resultados da execução orçamental confirmaram o absurdo deles; desequilibrar de novo em desfavor dos trabalhadores é agressão para quem apenas já sobrevive. A insensibilidade é gritante. A obstinação é autista. Há dolo social. Contra os conselhos de todos os quadrantes, atiça-se a ferro e fogo, quem já está a pouco mais do que pão e água.

2. As anunciadas medidas constituem erros de política económica e afrontas várias. Em primeiro lugar, troçam do Tribunal Constitucional: invocar o seu acórdão para, em nome dele, continuar a perpetrar a desigualdade entre público e privado que tinha sido verberada, é brincadeira de mau gosto institucional. Um órgão de soberania não deve nunca tripudiar outro, quanto mais em questões com esta sensibilidade. As medidas não cumprem o acórdão e desrespeitam o Tribunal. Vão tornar a chumbar.

3. Em segundo lugar, provocam o PS: sem ambiguidades, o PS já tinha afirmado que não estaria disponível para caucionar mais medidas de austeridade. Ao aprová-las, o Governo mandou às urtigas um trunfo essencial que diferenciava Portugal e, cientemente, desobrigou o PS de qualquer co-responsabilidade nas políticas orçamentais futuras. O Orçamento vai chumbar, passando.

4. Em terceiro lugar, troçam do Senhor Presidente da República: são públicas as suas tomadas de posição no sentido de que havia limites para os sacrifícios. Ora, o Governo mostrou que preza nada os rebates da consciência social-democrata que Cavaco Silva possa ter e, com isso, fragilizou-o mais: ou os limites dos sacrifícios, afinal, ainda não tinham sido atingidos e Cavaco fica mal ou foram agora ultrapassados e Cavaco mal fica, porque nada vai fazer.

5. Enfim e não o menos, estas medidas troçam de todos nós, tidos por idiotas e mansos, incapazes de perceber os truques de quem aparenta dar por um lado, para retirar o dobro pelo outro. As pessoas não gostam destas manigâncias e dissimulações. Chamam-lhe mesmo nomes mais feios. Germinam actos de desespero. Não são apenas os descamisados recorrentes. São os camisados que já não conseguem sustento para os seus, livros para o ano escolar, propinas para a Universidade. A classe ex-média.

6. Em nome de quê é que se cometem estas afrontas? Aparentemente há três motivações: desde logo, reduzir os salários reais dos trabalhadores, porque a baixa produtividade assim o postularia. Mas a produtividade de uma economia – a relação ente o custo dos factores e a riqueza gerada - não é uma meta em si mesma: um país pode ter uma alta produtividade, mas manter o povo na miséria, se a riqueza for mal distribuída. Estamos a tomar a nuvem por Juno.

7. Depois, diminuir ainda mais o peso dos salários do sector público para alcançar a meta do défice. Mas os 3% do défice orçamental devem ser prosseguidos com cortes noutros sectores da despesa pública, socialmente menos agressiva e dentro de um prazo mais alargado. O retraimento da procura interna decorrente da redução do rendimento disponível das famílias, está a fazer descer a receita pública, prejudicando esse objectivo.

8. Finalmente, reduzir a parte da TSU suportada pelas empresas, como factor de competitividade. Mas a miragem de que a redução da TSU para as empresas possa estimular o investimento e o emprego, releva do puro dogmatismo. Como todos os empresários sabem, o que eles precisam é de crédito, que continua bloqueado. Mais liquidez é sempre bem-vinda para empresas, mas nem as associações patronais se lembraram de fazer suportar pelos trabalhadores, a parte a reduzir.

9. O Governo teve orelhas moucas e insiste em sobrecarregar quem alquebrado já está. Opta pela pauperização da classe média e condena a uma indigência mais generalizada, beneficiando de novo muito poucos e sem consequências macro que se vislumbrem. Prefere a ruptura social grave a um equilíbrio mínimo que a comunidade, apesar de tudo, lhe estava a permitir.

10. O que vai passar-se a seguir só pode ser pior: oposição despeitada no parlamento, legítima defesa social nas ruas, imbróglios constitucionais, fragilidade das instituições e uma economia moribunda a fermentar todos os inconformismos. Guerra Junqueiro escreveu um dia que os portugueses eram "Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas."

A História demonstra que Guerra Junqueiro se enganou várias vezes: sempre que a canga ultrapassou alguns limites.

Docente da Faculdade de Direito de Lisboa

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