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01 de Setembro de 2006 às 14:33

O’Neill desistiu há vinte anos

Ele não merece, mas vota no PS”. Um estribilho criado por um poeta de génio, que a direcção dos socialistas recusou. “O PC não é aquilo que se vê”. Também lhe pertencia, este jogo fonético, resultado de um apurado sentido de ironia.

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Ele não merece, mas vota no PS". Um estribilho criado por um poeta de génio, que a direcção dos socialistas recusou. "O PC não é aquilo que se vê". Também lhe pertencia, este jogo fonético, resultado de um apurado sentido de ironia.

Falo de Alexandre O’Neill, que lá se foi, fez vinte anos, no silêncio iletrado da Imprensa, mais propensa a cultivar o hilariante do que em alertar a consciência dos leitores, como é seu dever e sua obrigação. Apenas um jornalista, Albano Matos, referiu a data, em texto no "Diário de Notícias".

A biografia deste homem está pejada de acidentes e de incidentes inverosímeis. Escreveu alguns dos mais belos, contundentes e antipanfletários poemas contra o pequeno fascismo santacombadense, como "O Poema Pouco Original do Medo"; e odes ao amor tão definitivamente pudicas como dolorosamente pungentes: "Um Adeus Português", por exemplo. Sabia de palavras, de autores, de cores, de vinhos tintos, de saladas, de amizades, de cumplicidades e de uma forma pessoal de integridade e de ética. Amou muitas mulheres; mas só a uma, verdadeiramente.

Descobria escritores, acicatava as curiosidades dos amigos para essas descobertas. Disse a José Cardoso Pires que tinha de ler Roger Vailland; a Carlos de Oliveira, ofereceu livros de Alexandre Viallate; a mim, "Episodios Nacionales", de Benito Perez Galdós. O faro e o gosto literário do O’Neill eram incomuns. Embora conhecedor do seu imenso talento, nunca se tomou demasiado a sério: gozou com ele e gozou com os outros, sem jamais perder uma régia elegância, nem fazer tropeçar a educação de berço e de família. Recuperou, envolvendo-a de terna sedução, a grande poesia sarcástica e faceta portuguesa, remanchando-a, remanejando-a, reavaliando-a e reavendo-a para um sítio quente chamado coração. Quanto ao resto ou a diversas coisas de estética, aí, ele era de uma inclemência nada cristã.

Conversámo-nos dias e noites sem fim. Bebíamos tintos por ele escolhidos, ouvia-o e às suas mágoas; ele, às minhas decepções. Certa tarde tocou no batente do jornal onde eu trabalhava: era Natal, vinha com uma prenda: "A Guerra do Fim do Mundo", de Vargas Llosa, em castelhano, com uma dedicatória de derreter o coração. Senti-lhe, nesse dia mais do que nunca, as amolgadelas que a solidão ia fazendo naquele corpo moldado em ternura e em recato.

Alguns dos seus ódios possuíam algo de irracional e, decorrentemente, de inexplicável. Detestava Hemingway, em especial "O Homem e o Mar"; e Fernando Namora, Nuno Bragança, Nuno Júdice, estavam ferrados no rol das suas virulências. Dos companheiros de geração e de jornada escorraçou Cardoso Pires e Alexandre Pinheiro Torres. Ao primeiro, foi até ao fim. Com o segundo, a história é outra. Desacordaram em qualquer assunto, e o O’Neill proclamou: "Durante cinco anos não nos vamos falar!" E o Pinheiro Torres, que não era nada dado à meiguice a à contemporização, respondeu: "Não cinco: dez anos! Durante dez anos não te falarei!" Eram amigos de adolescência. Decorridos os tais dez anos, Alexandre Pinheiro Torres veio de Cardiff, de cuja universidade era catedrático, bateu à porta da Rua da Escola Politécnica, e bramou: "Aqui estou eu!" Abraçaram-se, comoveram-se. Mas era assim mesmo. Pinheiro Torres também se embrulhou com Cardoso Pires, e a zanga devia ser grave: quando se falava em Pires, o Torres fazia caretas e resmungava.

Houve tempo, a seguir ao 25 de Abril, que o nome, alguns versos e algumas estrofes de poemas do O’Neill eram citados por políticos em viagem. Mal citados, aliás. O grande poeta já não se divertia: habitava nele qualquer coisa de remoto. Percebeu, antes de todos nós, que a cultura da imagem iria sobrepujar o gosto da palavra, o prazer da figuração, a força da metáfora. A civilização da figura, a significação da frase as habilidades das analogias seriam suprimidas em nome de quê? Disto que por aí está? Do Valentim Loureiro a dispor de mais espaço e tempo nas televisões do que o extraordinário homem de ciência que é o prof. Alexandre Quintanilha? De um tal Cunha Leal, que parece um labirinto sem jardim a confundir, ainda mais, as meninges do pessoal, acerca de uma trapalhada qualquer no futebol caseiro? E essa anotação absurda que é o dr. Ferraz da Costa, propugnador de uma "união da Direita", percalço que ninguém sabe o que é, e nem ele próprio desconfia o que seja? A lista é insuportavelmente grande.

Alexandre O’Neill fez mais pelo País do que qualquer destes cavalheiros. E todos eles, e muitos muitíssimos mais, apedrejam constantemente o idioma, como princípio, meio e fim. O’Neill fez, pela língua portuguesa, pela literatura portuguesa, pela cultura portuguesa a bandeira desfraldada do seu destino, associando-o ao nosso, comum. Uma língua que é a quarta ou a quinta à escala mundial, e que é tratada como parte bastarda daquilo que realmente nos identifica.

"Somos periféricos", afirmava, há dias, na SIC-Notícias, com olhos cabisbaixos, e a fúnebre fisionomia que o distingue, o dr. Ferraz da Costa, tartamudeando umas abstrusas respostas às perguntas inteligentes de Mário Crespo, excelente profissional. E que fez, tem feito, fará o dr. Ferraz da Costa para que o deixemos de ser? Periféricas são a Finlândia, a Irlanda, a Suécia, a Dinamarca, a Noruega; e ponha lá também a Holanda, e o Japão, e a Coreia do Sul. Bom: quem fala sueco, dinamarquês, norueguês, holandês, coreano, japonês fora daqueles territórios? A comparação com a medida dos falantes de português não permite ambiguidades. Acontece um porém: as políticas dos governos daqueles países (sejam de Direita ou de Esquerda), baseiam parte da sua estratégia numa junção entre cultura (identidade) e economia (necessidade), e não nessa disjunção primária que dá como causa de todos os males a Constituição e os sindicatos - que "não são flexíveis"!

Foi contra as ruínas prévias destas cabeças ocas que o Alexandre O’Neill sempre combateu. A indecisão, a dúvida, o desconcerto, a ignorância impante eram os seus adversários preferidos. Zurziu com implacável violência essa gente que só o é porque "aparece" nas televisões. Estão a falar: não estão a dizer coisa alguma. E são velhos, anacrónicos e extemporâneos. Pertencem a outra história e não dão por isso.

"Antes de seres "o morto" que és agora,

antes de teres vigência e estatuto,

há muito que não perdias pela demora

de vires encher o esquife devoluto".

APOSTILA - O meu artigo "Prosa com Endereço Certo", colocada, anteontem, no sítio do "Jornal de Negócios", resultou no que se esperava. "O pequeno mundo do comentário escondido com insulto de fora", para usar a expressão de "Lema", um dos meus correspondentes, regressou ao divã deste novo confessionário psiquiátrico. Saúde e bichas, como diziam, outrora, os surrealistas.

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