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28 de Março de 2008 às 13:59

O sonho maior de um homem superior

O Teatro Villaret reabriu na última terça-feira. E a data foi aproveitada para homenagear um dos grandes comediantes portugueses, Raul Solnado, cuja dimensão humana é já muito rara. Solnado e eu alimentamos, há décadas, uma amizade intacta por não consent

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Nos tempos em que se arriscava tudo pelo singelo gosto de se ser amigo e defensor da liberdade, meti-me em coisas políticas. Nada de mais, nem de heróico: apenas a razão imperativa de quem admitia estar a cumprir um dever maior. Expulso de “O Século” por envolvimento na Revolta da Sé (que os historiadores consideram ser o antecedente do 25 de Abril), vivi numa semiclandestinidade. O que não impediu de ser apoiado e protegido por amigos muito queridos. Evoco, nesta coluna um pouco pessoal (e por isso me desculpo aos Dilectos), os nomes de João Coito e de Manuel Figueira, cuja memória venero com júbilo, jornalistas de alto coturno, afectos ao regime, e, neste assunto, nos meus antípodas. Nada do que pensavam, nada do que eu pensava alguma vez alterou o rumo destas amizades sem mácula, que se continuaram através das famílias respectivas.

Um outro, sempre presente, sempre vigilante foi o Raul Solnado. Mesmo sabendo no que eu estava envolvido, arranjou-me, com o seu imenso prestígio, um emprego no Teatro ABC, de que era proprietário o empresário de espectáculos José Miguel. O Parque Mayer era, então, o centro do mundo e o alfobre de onde iam saindo projectos e sonhos. A história de cada um era a história que se atravessava nos outros. E os percursos, os mesmos: Cervejaria Ribadouro, Maxime, Hot Club, casa de fados Márcia Condessa, Ritz Clube e, madrugada alta, fim de festa na casa de um de nós, à bebida e à conversa, moldando as coisas a nosso bel-prazer. Ao contrário do que escreveu Paul Nizan: tínhamos 20 anos e aquela era a mais bela idade da vida.

Eu traduzia livros, era redactor no “República”, acabara de participar no file de Fernando Lopes, “Belarmino”, com uma entrevista longa e terrível, e cumpria os rituais da época. Eis senão quando o Solnado me convida a viajar com ele ao Brasil. Fora contratado pela TV-Rio e levava-me como secretário. Eu não sabia muito bem quais seriam as minhas funções. Ele respondeu-me: “Funções de amigo!” O Brasil era a minha inevitabilidade: aprendera a amar a sua grande literatura através da música popular e dos seus cantores maiores: Noel Rosa, Dalva de Oliveira; depois, Lúcio Alves, Dick Farney, Silvinha Teles; Zé Kéti, Monsueto Menezes, depois ainda, Tom Jobim, Vinicius, os grupos sonoros do Beco da Garrafa.

A perspectiva de viver (durante quase oito meses) no grande país verde alvoroçava o coração jovem de quem flutuava num país cinzento, dirigido por gente torpe. Lá fomos. Lá fui. Aterrámos no Galeão no último dia do mês de Março de 1964. Eu ia para ouvir samba e percorrer as ruas míticas de uma cidade sem par. Presumia ir viver num país livre, no qual uma experiência política de Esquerda estava em desenvolvimento. Assisti a um golpe de Estado, apoiado pelos Estados Unidos, e que constituiu o começo de uma série de atentados à democracia em outros países latino-americanos. É a experiência essencial de uma vida. E travei conhecimento com Rubem Braga, o maior cronista brasileiro, e a uma distância incomparável de todos os outros; com Otto Lara Resende, Augusto Frederico Schmidt, Nelson Rodrigues e Ledo Ivo (estes três últimos escarmentados pelos seus confrades, por terem vivamente apoiado o golpe militar, traduzido num cortejo de selvajarias), Vinicius, António Maria, Millôr Fernandes, Paulo Francis, Fausto Wolff, Ivan Lessa, Jaguar, por aí fora. Mais tarde, levaria Millôr para o “Diário Popular”, prefaciaria um livro dele, “Computa, Computador, Computa”, e organizaria uma selecção de crónicas de Rubem Braga, de quem fui amigo e com quem me carteei até ao fim da vida dele.

O Raul Solnado atingira uma popularidade incomum. Era apontado nas ruas do Rio, saudado com respeito e admiração, e o seu programa televisivo felicitado como um grande acontecimento artístico. Um dos produtores do programa, um homem afável, reservado, e cultíssimo, Péricles do Amaral, fora tenente na avançada de Luís Carlos Prestes conhecida, historicamente, pela Coluna Prestes, que incendiara o Brasil revoltoso, e que Jorge Amado eternizaria com um livro “O Cavaleiro da Esperança.” Foi o prestígio do Raul que me abriu as portas destes conhecimentos.

Mas Solnado acalentava um objectivo superior: o de construir um teatro de ensaio. Para isso, visitou dezenas (repito: dezenas) de empreendimentos do género não só no Rio de Janeiro, como em São Paulo e em Belo Horizonte. Disputado para fazer espectáculos em boîtes, cabarés, teatros, o meu amigo recusou. Poderia ter acumulado considerável fortuna. Fui testemunha de propostas fabulosas, por ele rejeitadas. Possuo, ainda, alguns recortes de jornais e de revistas da época, assinalando o êxito formidável do “pequeno luso” que arrastava multidões para o ver e ouvir.

O Teatro Villaret é o resultado de um sonho que ele não permitiu fosse adiado. E, apesar das dificuldades medonhas levantadas pelo então secretário nacional de Informação, César Moreira Baptista, mais tarde ministro do Interior de Marcelo Caetano, o velho Raul levou a sua avante. A extraordinária grandeza deste homem não tem medida. A modéstia dele impede-me de narrar um episódio (entre muitos outros) ocorrido depois do 25 de Abril, e no qual, exemplarmente, foi ajudar quem tanto o havia torpedeado.

Empenhou-se, pediu dinheiro emprestado a fim de manter viva a chama de uma ideia: apresentar teatro de qualidade e homenagear um actor que respeitava e admirava: João Villaret. Na terça-feira, 25 de Março, lá estava ele, deslumbrado como um miúdo, comovido porque o seu coração não tem rugas, maravilhado com tudo. Como sempre esteve, como sempre foi.

Se o virem por aí dêem-lhe um beijo. Ele ofereceu-nos milhões deles. Sem nada pedir em troca.

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