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Opinião
21 de Abril de 2005 às 13:59

O «sismo» e os sismógrafos

A Advocacia portuguesa está num processo de adaptação aos desafios do mundo moderno, da construção do espaço europeu, da globalização e das novas tecnologias que favorecem a internacionalização. Como sempre que ocorre um processo de adaptação acelerado à

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Uma entrevista que concedi ao «Jornal de Negócios», a propósito da sociedade de Advogados que sou sócio há vinte cinco anos, causou uma espécie de terramoto. Como habitualmente acontece quando há movimentos telúricos, vieram à superfície magmas profundos, terrenos comprimidos, torrentes contidas, violências reprimidas.

Após abalos deste tipo, a natureza encarrega-se – mais cedo ou mais tarde – de gerar novos equilíbrios. O que, no entanto e por vezes, demora muito tempo. Não é bom, neste mundo da advocacia, perder tempo. A ajuda humana pode, então, facilitar esse desejável objectivo. Este meu texto deve ser lido nesse pressuposto. Estou em crer que no final se chegará facilmente à conclusão de que a entrevista não era motivo para tanto tremor, e a natureza – apaziguada porque esclarecida – voltará ao seu normal ritmo. Com o que todos, por certo, ficaremos felizes.

O libelo acusatório

O terramoto ficou registado em vários sismógrafos, espalhados por todo o País. A entrevista, dizem eles, constitui uma falta deontológica passível de sanção disciplinar, é uma forma censurável de angariar clientela, defende um cartel, pretende privilégios, pede favorecimento político, desvaloriza a competência em relação ao tamanho, exprime a opinião de uma sociedade de interesses e não de Advogados, recusa o direito a existir para os Advogados que trabalham sozinhos, quer acabar com a concorrência, revela um espírito mercantilista, é um sinal que demonstra que Orwell tinha razão com o seu famoso livro «O Triunfo dos Porcos», concretiza um desejo de acabar com as auditorias jurídicas dos ministérios, propõe que o Estado concessione os serviços da Procuradoria-geral da República.

O sismógrafo do próprio «Jornal de Negócios» também registou o terramoto. Mas, talvez pela melhor qualidade do aparelho de registo, revelou sinais menos radicais. Em todo o caso, este sismógrafo detectou que a entrevista revela um pedido de protecção, de favor, de um regime especial ou lugar cativo, a recusa da concorrência, a defesa do condicionamento industrial, o fim da igualdade de oportunidades, a criação de discriminação em função da nacionalidade, a defesa de um oligopólio. O sismógrafo também revelou que a entrevista é presunçosa, arrogante, perigosamente oligopolista, utiliza motivos fúteis para medição, é obscura, usa suspeitosos conceitos, revela o vitupério do auto-elogio.

Deve reconhecer-se, desde já, que o sismógrafo do «Jornal de Negócios» é um pouco diferente dos outros, e menos antipático. Talvez porque as declarações eram tomadas de qualificados Colegas e Amigos que são – saudavelmente – concorrentes no mesmo espaço, os registos do sismógrafo surgem mais comedidos e, nessa medida, merecem resposta.

Houve um terramoto?

Vamos então revisitar o que os sismógrafos leram como terramoto. A entrevista está suficientemente fiel, o que se compreende dada a experiência e qualidade do entrevistador. Tem, como é óbvio e natural, alguns lapsos: a minha filha é em PLMJ o que chamamos «sócia júnior» e ainda não sócia de indústria; em Londres e não em Portugal é que as sociedades de Advogados começaram a fazer trabalho de banco de investimento; a defesa de clientes acusados de tráfico de droga, que por acaso e que me lembre nunca ocorreu aliás em PLMJ, seria possível se um de nós acreditasse na inocência do cliente e não apenas no cliente. Também em relação ao tema «terramótico» se passa um pouco do mesmo, por exemplo quando aparece dito por mim que «temos os melhores especialistas na saúde», quando obviamente o que disse foi que temos «dos» e não «os», o que seria de facto presunçoso, arrogante... e, acima de tudo, falso ou, pelo menos, impossível de provar...

A parte da entrevista que está em análise pode ser resumida – com rigor – assim: acho que as sociedades de Advogados portuguesas são verdadeiros centros de decisão nacional (CDN), criam riqueza, fazem exportações, ajudam nas importações, pagam impostos, realizam formação, dão carreira aos jovens Advogados, estão sujeitas a concorrência externa muito forte.

Acho que as sociedades portuguesas – pelo menos as vinte ou trinta de maior dimensão, que segundo o «Jornal de Negócios» integram mais de 1250 Advogados – concorrem num mercado aberto e os seus concorrentes externos beneficiam de um ambiente regulatório mais liberal, que aplicam ou podem aplicar em relação ao mercado português, o que lhes dá uma vantagem competitiva a acrescer à respectiva dimensão.

Defendo que a escolha de Advogados pelo Estado e por outros entes públicos deve ser transparente e fundamentada; defendo que para as grandes operações que implicam equipas muito amplas e com sofisticada e diversificada experiência profissional, as sociedades portuguesas de maior dimensão no mercado devem ser incluídas na lista, conjuntamente com outras, devendo o Estado escolher quem entenda que o poderá servir melhor.

Proponho que, nesse tipo de operações, o Estado – em vez de ir ao mercado externo contratar sociedades de Advogados estrangeiras (ou de as contratar através das suas sucursais em Portugal, que vão continuar a aparecer), ou de subestabelecer em bancos de investimento ou em consultoras fiscais tal tarefa – abra concursos, incluindo neles as sociedades de Advogados portugueses que possuem «track record» comprovado e que, por isso, também estão em condições de prestar um serviço adequado.

Acho que a qualidade da Advocacia portuguesa é muito boa e que compara com os melhores «benchmarks» europeus, que «temos um dos mercados de advocacia mais competitivos da Europa» e que com isso a qualidade melhorou, que «Portugal tem, pelo menos, dez sociedades de Advogados de enorme qualidade e algumas com grande política de crescimento». Acho ainda que «a entrada das grandes firmas estrangeiras vai continuar. Isso é bom para a advocacia portuguesa» (citações retiradas de declarações que fiz na entrevista).

Penso mais: «nós não queremos nenhum privilégio, não queremos que, por exemplo, o Estado e as grandes empresas públicas só trabalhem com estas três sociedades». Nunca pedimos e não pretendemos apoios para a exportação de serviços jurídicos. Julgo que os «casos em que trabalhámos para o Estado nestes três anos foram percentualmente menores do que justificaria a nossa dimensão», isto é, são inferiores ao que se podia chamar a nossa quota de mercado. Que «o Estado deve escolher [a sociedade de Advogados] que lhe servir melhor». Que se o Estado tem de justificar a razão porque escolhe PLMJ, por maioria de razão deve justificar quando escolhe sociedades de menor dimensão e com menos diversificadas valências (as citações continuam a ser da entrevista).

O que disse na entrevista – e sobretudo o que quis dizer – foi isto. Foi isto tudo e não foi mais do que isto.

Admito que a necessidade de resumir num texto quase duas horas de conversa obrigue a arrumações que podem levar pessoas de boa fé a um equívoco. Por exemplo, veja-se o caso da resposta em que me insurjo com as questões (que Pedro Guerreiro traz porque, obviamente, ouviu-as suscitar) relativas ao facto de se pretender que seja justificado por que razão o Estado contratou PLMJ para uma complexa e longa operação que durou 2 anos (e não 3 anos) e que começou com a negociação para a saída da Eni da Petrogal (e não com a sua entrada, como por lapso quiçá meu surgiu escrito). Foi ao ser confrontado com isso que dei esta resposta: faz menos sentido fazer a pergunta ao escritório de maior dimensão, com maior número de valências e um dos que tem maior experiência acumulada, do que faria sentido perguntar quando é seleccionado um outro de menor dimensão, o que curiosamente nunca vi fazer em nenhuma entrevista.

E também por isso disse que, no fundo, se o Estado tem de justificar quando nos escolhe, terá de justificar quando não nos escolhe e nem sequer nos convida para apresentar condições. Reagi, e reagirei sempre que sinta que o que está subjacente é que se o Estado escolher um escritório maior isso é baseado axiomaticamente num critério de quantidade, mas se escolher um menor só pode ter-se baseado na qualidade, também axiomaticamente.

Como é óbvio, não defendo nada do que sou acusado por sismógrafos vários. Mas, para isso, vamos aos detalhes.

Os CDN’S e a concorrência externa

Um dos inconvenientes (ou vantagens) de quem escreve o que pensa ou é obrigado a tomar decisões, é que se torna fácil encontrar a sua opinião fora de momentos de polémica. Ora, durante três anos, fui Bastonário da Ordem dos Advogados e por isso tive poderes regulatórios. Tudo fiz para facilitar a entrada no mercado a sociedades estrangeiras, como sabem aliás dois dos Colegas que responderam ao «Jornal de Negócios» na passada semana, e muitos outros. E poderia não ter sido assim. Bastaria que copiasse o que se passa em França ou em Itália, para dar apenas um exemplo. Ou bastaria que fizesse uma interpretação formalista da Lei das Sociedades de Advogados então em vigor.

Agi de um modo liberal, por achar que isso é bom para os Advogados portugueses. Escrevi e publiquei vários textos em que defendi que a opção proteccionista é um erro estratégico e uma ilusão política. E o mesmo penso de todas as soluções cartelizantes ou oligopolistas. Como posso provar com o exemplo de algumas medidas que como entidade reguladora promovi ou concretizei: a liberalização (ainda que cautelosa) da publicidade, a criação de especialidades, a lei dos actos próprios dos Advogados, a nova Lei das Sociedades de Advogados, o novo Estatuto, tudo se inscreve nessa linha. Talvez por isso, tive o grato prazer de ouvir a um alto quadro da Comissão Europeia, a propósito do projecto de Directiva dos Serviços, a afirmação de que o ambiente regulatório da advocacia portuguesa não suscita preocupações.

Sempre afirmei – e fi-lo aliás nesta entrevista – que a qualidade da advocacia portuguesa e, nela, dos nossos concorrentes, é excelente. Nunca afirmei nem defendo – pelo menos desde o tempo em que lia o «Condor Popular» – que tamanho é qualidade. Talvez por isso, sempre defendi em PLMJ a existência de micro-estruturas profissionais de equipas permanentes e tendencialmente especializadas, porque o gigantismo me assustaria. E seria aliás um tiro no pé (para uma sociedade de Advogados que é portuguesa e quer assim continuar) o argumento da quantidade, quando a 50 minutos de Lisboa estão sociedades com 700 ou mais de 1000 Advogados e, a duas horas, várias com mais de 1000 e até com mais de 2000 Advogados. E, sobretudo, quando umas e algumas das outras estão presentes, através de sucursais ou outras soluções jurídicas, em Portugal.

Nunca pedi privilégios ou apoios, nomeadamente à exportação, para a minha Sociedade, nem para todas as outras. O que sempre disse – e continuo a afirmar – é que o Estado Português tem regras que prejudicam fortemente as sociedades de Advogados e, entre elas, as portuguesas. Para dar apenas alguns exemplos, as sociedades de Advogados não podem constituir fundos de reserva, nem fundos de pensão, não têm reporte fiscal de prejuízos, não têm apoios à formação nem incentivos à exportação, devido ao regime de transparência fiscal pagam taxas mais elevadas de imposto, as sucursais de sociedades estrangeiras não têm o regime da transparência fiscal e podem (pelo menos em França há fortes queixas nesse sentido) fazer planeamento fiscal com mais facilidade por estarem situadas em vários países.

E penso mais: não tenho notícia de que alguma vez o Governo inglês tenha contratado uma sociedade não inglesa das muitas que se instalaram na City vindas de outros países, mas se calhar é falta de informação. E sei mais: uma associação com uma sociedade estrangeira, de um dos concorrentes que muito estimo e respeito, terá sossobrado porque os associados estrangeiros queriam que deixassem de representar um tradicional Cliente português para defenderem um concorrente de outro País, mas se calhar é um caso isolado. E julgo saber ainda mais: em alguns Países e em alguns sectores, a entrada de grupos estrangeiros, que praticavam «dumping», levou à destruição de concorrentes locais, assistindo-se a seguir a uma subida de preços nunca vista, mas se calhar nada disso se aplica a Portugal e seguramente que não se aplica à Advocacia.

Peço, por isso, que me seja autorizado continuar a afirmar que as sociedades de Advogados portuguesas (e não apenas as 3 maiores, como é evidente) são CDN’s, sobretudo quando daí não resulta nenhum apelo a proteccionismo, a favoritismo, a chauvinismo. O que desde já muito agradeço, se não for por outras razões, em nome de um princípio que há séculos é conhecido como o direito à liberdade de expressão.

As 3 grandes portuguesas e o cartel

Quanto a este grupo de acusações poderia oferecer – como dizemos em Tribunal – o merecimento dos autos, a saber, o que foi publicado na entrevista. Não defendi, para nenhuma delas e ainda menos para PLMJ, qualquer direito, não pedi nenhum privilégio, nem sequer uma vantagem em igualdade de circunstâncias.

Estou aliás à vontade nesta matéria, porque sou Advogado há quase 30 anos e contam-se pelos dedos de uma só mão os assuntos que me lembro de ver PLMJ a tratar para o Estado. Com o que até nos congratulamos, porque em regra o Estado paga pior do que os privados...

Seja como for, como é óbvio não disse – e não defendo, nem nunca defendi – que o Estado contrate sempre Advogados externos para tratar de todos os assuntos. E quanto isso, de novo, posso dar provas: na revisão do nosso Estatuto defendi, e isso foi contemplado, que o Estado e as Autarquias possam contratar Advogados para os seus quadros, com eles constituindo contenciosos equivalentes aos das empresas para o representar.

E também não disse – e não defendo, nem nunca defendi – que o Estado e as Autarquias abram concursos para todas as situações em que precisem de contratar Advogados externos, e muito menos que quando entendam abri-los tenham de incluir no grupo sempre as três maiores sociedades de Advogados portuguesas, e muito menos ainda que tenham de incluir PLMJ.

O que disse e defendo é que – em operações jurídicas muito complexas, que exigem a mobilização de muitos Advogados, com especializações muito diversas e experiência acumulada em operações semelhantes – o Estado consulte várias sociedades e que nelas inclua aquelas que o mercado vem demonstrando que são capazes de responder quando contratadas por entidades privadas para operações semelhantes. E, com todo o respeito que tenho, nas minhas próprias palavras, pela «enorme qualidade» de outras sociedades de Advogados existentes em Portugal, entendo que as três maiores portuguesas têm também qualidade bastante para serem consultadas. E não vejo, sinceramente, nenhuma razão objectiva para serem excluídas, excepto – evidentemente – quando na operação em questão estão em conflito de interesses e então nunca poderiam aceitar. A menos que por serem as maiores devam ser afastadas para permitir que outras fossem favorecidas.

E sei mais: sei que o Estado português e as Autarquias muitas vezes se defendem mal, tentando poupar dinheiro na consulta jurídica e na defesa em tribunais – não contratando Advogados – e acabam por pagar cara a poupança, não aprendendo com a iniciativa privada que actua de modo diverso, mas se calhar é exagero da minha parte. E penso mais: o Estado Português não paga aos Advogados que contrata mais do que uma fracção do que paga a outros consultores, financeiros ou fiscais por exemplo, mas se calhar é porque os Advogados devem ser ontologicamente os parentes pobres. E julgo saber ainda mais: o Estado negoceia mal a contratação de serviços jurídicos, como negoceia mal a contratação de outros serviços, porque precisamente não tem uma estratégia «comercial e empresarial» na sua actuação a este nível, mas se calhar ao dizer isto estou é a ser parvo.

Conclusão

Não vejo, por tudo isto, motivos para tanta comoção. A não ser a convicção bem portuguesa de que quando alguém diz alguma coisa deve sempre ser lido nas entrelinhas. Convicção errada e, creio, especialmente inadequada para apreciar o que digo: quem me conhece sabe que gosto de falar claro e de assumir com frontalidade o que penso.

É claro que é sempre possível pegar numas frases de uma entrevista, sem curar do seu contexto e do carácter reactivo que sempre existe neste tipo de situações, e transformar em doutrina o que por vezes é apenas desabafo. Se assim foi, talvez seja útil ler o que foi publicado há quinze dias à luz do que hoje escrevo.

Não me peçam, portanto, que faça mea culpa. Apenas de uma afirmação que fiz me arrependo, pela injustiça que implicitamente pode conter; mas este caso nada tem a ver com o que aqui se trata.

A questão que poderá estar na origem de tanta e tão variada comoção parece-me ser totalmente outra. A sociedade portuguesa está em processo de adaptação a um Mundo muito complexo e competitivo. A advocacia portuguesa está também envolta em tal processo. O Mundo mexe e os têxteis chineses aí estão a demonstrá-lo. Acredito nas vantagens da globalização e da internacionalização, não obstante ter o meu destino profissional ligado a um pequeno país periférico, que manifestamente não será dos que com esse processo mais beneficiam.

Portugal não deve fechar-se, mas deve defender-se. Os centros de racionalidade e de decisão nacionais não podem ser desprezados e tratados como se fosse irrelevante a sua sobrevivência, em termos adequados aos embates competitivos que vão sofrer.

Por outro lado, a Advocacia portuguesa – embora anos mais tarde do que as suas congéneres europeias, o que já de si é muito penalizante – está num processo de adaptação aos desafios do mundo moderno, da construção do espaço europeu, da globalização e das novas tecnologias que favorecem a internacionalização. Como sempre que ocorre um processo de adaptação acelerado à realidade envolvente, é totalmente compreensível que muitos se choquem com as evoluções e que gostassem de voltar a um tempo passado, miticamente vivido como uma idade do ouro.

Aquele alerta e esta evolução – que deveriam agradar a todos os meus Colegas, que são a esmagadora maioria, que querem manter-se independentes dos grandes grupos internacionais e que pretendem que a Advocacia portuguesa independente não seja trucidada, como aconteceu em outras áreas da prestação de serviços a empresas – provocou reacções, cuja etiologia é variada e que não me parece sequer útil dissecar. Mas estou convicto de que, passado o momento das reacções instintivas e epidérmicas, fará reflectir. Essa é sempre a grande vantagem, o que resta depois de assentar o pó das polémicas. Se este episódio serviu para isso, valeu a pena. Se não servir, lamento; mas nada mais desejo dizer.

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