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O Portugal da desafronta

Há dias, Maria José Nogueira Pinto serviu-se da expressão Portugal Oculto para designar a pobreza que alastra, endemicamente, pelo País; a perplexidade angustiada que nos envolve, num abraço letal; e a ausência de perspectivas que o turvo horizonte nos re

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Estou nos antípodas políticos dela, mas próximo de um sistema cultural que talvez se traduza pela atenção às urgências contemporâneas.

Ela é católica; eu, ateu. Ela disse, um dia, que combatia a Direita dos interesses e defendia o compromisso com o ser. Eu, batalho o esquematismo da Esquerda, os seus desvios e as suas traições. Ela, vitupera a Esquerda; eu, desaprovo a Direita. E ambos sabemos que uma não existe sem a outra. Depôs, claro!, há os desentendimentos essenciais: eu acredito em que a História caminha no sentido da libertação do homem; ela, na imutabilidade e na conservação das possibilidades.

O Portugal Oculto é, também, aquele cujos contornos permitem a promiscuidade entre a política e os grandes empresários. Salazar colocava ex-membros do Governo como “delegados”; agora, altos dirigentes políticos dos partidos de poder (PS e PSD), mas não apenas estes, transitam para o lado do dinheiro com inaudita desfaçatez. Maria José está no direito de defender ou de amenizar a relação de causa e efeito que estas “movimentações” reflectem. Porém, contradiz o princípio de “ter”, que reprova, e o do “ser”, que aplaude. Não há elaborações próprias da moral e da ética. Estas constituem aquilo que cimenta o edifício da integridade. Há quem escolha os dias pares da semana para ser digno, e os outros dias para cometer tropelias a seu bel-prazer.

O que vai restando das nossas esperanças de uma sociedade mais justa está a ser seriamente danificado. Não é de mais repeti-lo. E as frases bem boleadas, as declarações de princípio cheias de bons sentimentos não chegam para ocultar o que exalta, indigna e fere o tal outro Portugal.

Esvaziou-se de conteúdo político algumas das questões fundamentais do nosso tempo, como, por exemplo, a do emprego, a da mobilidade, a da precariedade, e a das escolhas estratégicas que determinam o desenvolvimento económico. O primado da finança sobre o político ainda não encontrou resposta drástica dos dirigentes, não só portugueses mas, de um modo geral, ocidentais. A inexistência de debate propiciou a ascensão de uma mediocridade ávida, que tomou conta dos órgãos decisórios. Todos os sectores da sociedade foram atingidos. Desarmou-se o Estado dos seus meios fundamentais, e criou-se o expediente de que o “privado absoluto” é a solução substitutiva. A repartição dos rendimentos atinge expressões abjectas: a parte do capital aumentou substancialmente e a do salário diminuiu escandalosamente. O tema das reformas sumptuosas foi mansamente, cautelosamente, medrosamente abordado na Imprensa: as Rádios e as Televisões entraram em indiferente mutismo.

O reagrupamento de uma classe que finge inquietar-se com os dois milhões e meio de pobres portugueses, é a mesma que, levemente atingida com o 25 de Abril, nunca enriqueceu a paleta das suas sensibilidades com as cores da solidariedade social, que tripudiou sobre as mais elementares noções de atendimento e relação com os mais desprotegidos - a não ser com a “caridadezinha”. Como, há semanas, numa lúcida entrevista ao “Expresso” disse Abel Pinheiro, o Pia sempre esteve entregue às decisões de cento e cinquenta famílias.

O Portugal Oculto representa a síndrome mais elevada da crise da sociedade portuguesa. Um povo rejeitado que, pouco a pouco, perde a razão da identidade pátria e se dissolve na exacerbação de uma angústia tenaz, desprovida de horizontes, afastada do futuro porque este está desaparecido das perspectivas.

Que motivações pode ter um jovem com contrato a prazo, precariedade no emprego, inaproveitado nas suas habilitações, despejado dos seus sonhos? O fim do Estado de Direito está à vista. Os mercados financeiros não actuam de maneira drástica para resolver estes gravíssimos problemas porque essa não é a sua função. A “sociedade aberta”, de Popper, talvez explique a “hora do desencantamento”, de Weber. Não são meus autores de cabeceira; mas são releituras a que procedo com frequência. Como a Marx ou a Keynes – e a muitos outros mais. Talvez todos e cada um deles, à sua maneira e com as ideologias próprias, se tenham enganado, fornecendo-nos, embora, importantes pistas para a readaptação dos nossos conhecimentos. E talvez tenham acertado, porque não há outra razão para que a História ocorresse de outra maneira.

No entanto, creio que o estado a que as coisas chegaram é assustador. A fragmentação social indica-nos que a experiência do “mercado” não contém, em si, a panaceia para resolver a pobreza, nem é o único processo de desenvolvimento. Nunca o mundo possuiu tamanho grau de conhecimento. Nunca o conhecimento consentiu tamanho grau de miséria, desolação e sofrimento. O “mercado”, ao contrário do que proclamam os seus turiferários, não estruturou uma economia pública, nem estimulou um crescimento mais aberto. No caso português, então, a soma é pavorosa, e chega, até, à degradação.

O Portugal Oculto existe como uma chaga dos desamados e cresce com o ressentimento dos excluídos contra aqueles que só têm criado obstruções e alimentado um clima de violência – que deixou de ser latente para constituir uma ameaça e uma desafronta.

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