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O Pingo Doce roubou o 1º de Maio

Os directos do Pingo Doce neste Primeiro de Maio retrataram um país desmoralizado e empobrecido tentando freneticamente agarrar uma oportunidade de encher a despensa como noutros tempos.

Este ano, o Pingo Doce roubou o 1.º de Maio à esquerda. No dia do trabalhador em vez de, como é tradição, os telejornais abrirem com extensas reportagens sobre as manifestações organizadas para assinalar o dia, a principal notícia foi a da avalancha de pessoas que invadiram esses supermercados para beneficiar de uma promoção (provavelmente ilegal) que a Jerónimo Martins decidiu fazer no mesmo dia. Perante a escolha entre uma manifestação liderada pela CGTP e a oportunidade de comprar tudo por metade do preço, qual foi a escolha dos portugueses? Não parece ter havido muitas hesitações: a escolha foi lançar-se nas compras. As imagens na televisão mostraram pessoas com carrinhos cheios, prateleiras totalmente vazias, enchentes à porta, e caos generalizado. Houve notícias de intervenções policiais, necessárias para impedir que desentendimentos entre pessoas que tentavam chegar aos mesmos produtos levassem à violência.


Passos Coelho pode desde já agradecer a Alexandre Soares dos Santos. Todos os anos, de 25 de Abril a 1 de Maio, a esquerda domina o espaço público em Portugal. Quando a direita está no poder, já sabe que esse período é especialmente tenso. Este ano, a Associação 25 de Abril, que integra os militares que fizeram o golpe de Estado recusou-se mesmo a participar nas celebrações oficiais a ter lugar na Assembleia da República, alegando que o governo estava a acabar com as conquistas da Revolução. Soares e Alegre juntaram-se ao coro, e o espaço político que vai da esquerda do PS até ao PCP marcou alguns pontos políticos. Agora com esta iniciativa, o período de domínio mediático dessa Esquerda foi totalmente abalroado. Num clima de enorme crise económica, esperava-se uma capacidade de resistência e mobilização maior por parte das associações sindicais contra as políticas de austeridade. A crise está instalada, disso não há dúvidas. Mas a CGTP e a UGT não são interlocutores privilegiados do povo. Este 1.º de Maio, a manifestação não foi a descer a Avenida da Liberdade, antes a tentar entrar no supermercado para conseguir comprar os últimos produtos a metade do preço.

Este episódio não vem apenas mostrar a fraqueza das associações sindicais em Portugal ou do oportunismo político da Jerónimo Martins. Tem sobretudo interesse pelo que ele mostra sobre as classes médias em Portugal. Veio pôr em confronto duas versões dos valores que estas defendem. Temos o homo socialistus, que neste ano de 2012 é representado pelo trabalhador que ganha pouco, que tem perdido direitos e salário, e que luta pela melhoria das condições de trabalho. É solidário e manifesta-se contra as políticas de austeridade que estão a minar o estado social. Do outro lado temos o homo pingo doceus, que é antes de mais um consumista. Em concorrência com os outros consumidores, tenta acumular o máximo de bens ao menor preço. São duas realidades distintas do povo. A questão é que nesta altura de crise, para que os partidos de Esquerda tivessem mais voz, na tentativa de influenciar as políticas do governo actual, a primeira deveria ser mais forte do que a segunda, e pelos vistos não é.

É certo que em tempos de crise uma promoção destas pode fazer a diferença nos orçamentos de muitas famílias portuguesas, e isso não pode ser desvalorizado. Além disso, o consumo é fundamental para o crescimento económico. O primeiro político a entender e a legitimar a ânsia de ascensão social através do consumo nas classes médias foi Cavaco Silva a partir de 1985. Mas entre os anos oitenta e hoje há uma grande diferença. Enquanto nessa altura as reportagens nos hipers sobre famílias com carrinhos cheios simbolizavam a nossa europeização, o acesso a produtos nunca antes vistos em Portugal, os directos do Pingo Doce neste 1.º de Maio retrataram um país desmoralizado e empobrecido tentando freneticamente agarrar uma oportunidade de encher a despensa como noutros tempos.



Politóloga
Marinacosta.lobo@gmail.com
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