Opinião
O paradoxo turco
Nem uma vitória eleitoral esmagadora, arrebatando 47 por cento dos votos, nem uma segunda maioria absoluta no parlamento de Ancara permitem ao governo de Recyp Erdogan baixar a guarda. Os islamitas não conseguiram a maioria parlamentar ...
Os islamitas não conseguiram a maioria parlamentar de dois terços para elegerem um presidente e reverem a constituição imposta pela junta militar que regeu a Turquia entre 1980 e 1983.
Persiste, assim, o impasse que impediu esta Primavera a eleição do ministro dos Negócios Estrangeiros Abdullah Gul como presidente e obrigou a convocar as eleições legislativas que só deveriam ter lugar no final do ano.
O partido Justiça e Desenvolvimento de Erdogan tem agora de decidir se força a eleição de Abdullah Gul ou se cede, apesar de contar com o apoio de quase metade do eleitorado, e desiste de levar à presidência um político islamita.
A partir do início da sessão legislativa na próxima semana, o parlamento tem um prazo de 45 dias para eleger o sucessor de Ahmet Seczer. Caso não seja reunida uma maioria de dois terços dos 550 deputados para a eleição do presidente o parlamento será dissolvido e terão lugar novas eleições.
Outra eleição não é alternativa para Erdogan porque seria altamente improvável conseguir em tão curto prazo secar os apoios dos nacionalistas de extrema-direita e reverter a um parlamento bipartidário em que conseguisse obter os 367 mandatos necessários para uma maioria de dois terços.
UM TRIUNFO INSUFICIENTE
A votação de domingo saldou-se pelo retorno ao parlamento da extrema-direita (14 por cento dos votos e 71 mandatos), o fracasso da campanha anti-islamita do partido Republicano (21 por cento apenas mais 1 por cento do que na eleição de 2002, e 112 lugares) e a entrada de 27 independentes, entre eles 23 autonomistas curdos.
O sistema eleitoral que obriga a um mínimo de dez por cento dos votos expressos para um partido obter representação parlamentar implicou que o retorno da extrema-direita e a consequente redistribuição de mandatos reduzisse o bloco islamita de 352 para 340 deputados, apesar de Erdogan ter aumentado em 12 por cento a sua votação.
Erdogan viu sufragados os bons resultados económicos dos últimos cinco anos – apesar das dificuldades crescentes do sector agrícola que emprega mais de um terço da mão-de-obra e da taxa de desemprego oficial se manter nos dez por cento –, alargou o seu apoio entre as classes médias, triunfou nas cidades do litoral mediterrânico, obteve excelentes resultados nas zonas curdas e confirmou a irrelevância das alternativas não-islamitas do centro-direita.
A campanha desencadeada pela extrema-direita e o partido republicano, com apoio tácito das forças armadas, sobre uma alegada conspiração islamita para subverter o carácter laico do estado não resultou e a intervenção dos militares em Abril para impedir a eleição de Abdullah Gul revelou-se contraproducente.
Os islamitas têm, contudo, uma margem de manobra limitada.
Erdogan confronta-se com a pressão do seu eleitorado mais conservador. O partido que aboliu a obrigação legal da mulher obter autorização do marido para trabalhar, também tentou em vão penalizar o adultério e os seus presidentes de câmara promovem campanhas para eliminar o consumo de álcool.
Apesar de a maioria da população aceitar que seja erradicada a proibição do porte do lenço islâmico em instituições públicas e eliminadas outras imposições da tutela do estado sobre as instituições religiosas, a aplicação generalizada da xaria, a lei islâmica é, igualmente, recusada.
Neste aspecto, o peso da minoria alevi (cerca de 20 por cento dos muçulmanos turcos) e das tradições sufis são suficientes para garantir um elemento de tolerância e diversidade religiosa que afasta a Turquia dos riscos do radicalismo religioso.
Por outro lado, as reformas institucionais e económicas levadas a cabo por Erdogan não só reduziram o peso político e administrativo dos militares como comprometem crescentemente a sua tradicional influência nos círculos empresariais estatais e privados.
A tutela que as forças armadas exerceram desde a fundação da república está em risco, mas a curto prazo não é opção para as chefias militares o golpe de estado, como aconteceu em 1960, 1971 e 1980, ou, sequer, uma ameaça de intervenção como a que levou à demissão da coligação liderada pelo islamita Necmettin Erbakan em 1997.
A eleição de um presidente islamita representaria, no entanto, um terramoto político e na óptica dos altos comandos, claramente expressa pelo chefe do Estado-Maior General, Yasar Buyukanit, uma ruptura com os princípios seculares do estado.
Para Erdogan as negociações com a União Europeia, apesar de morosas, de resultado problemático e inquinadas pelo estatuto de Chipre, são uma salvaguarda contra uma intervenção militar, ainda que o fascínio por uma eventual adesão já só seduza menos de um terço dos turcos.
O RISCO MILITAR
A cartada nacionalista, no entanto, pode por em causa os equilíbrios institucionais. A votação na extrema-direita (mais de 4,7 milhões de sufrágios) é uma reacção clara às reivindicações de autonomia curdas, tal como a eleição de candidatos independentes em Diyarbakir (onde obtiveram 47 por cento dos votos) e nas regiões do sudeste prova o irredentismo da minoria curda.
O recrudescimento da guerrilha do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que já provocou mais de 200 mortes de militares turcos desde o início do ano, justifica a ameaça do estado-maior (apoiado pelos partidos republicano e nacionalista) de uma intervenção no norte do Iraque.
A guerrilha curda no sudeste da Turquia e no noroeste do Irão conta com a cumplicidade dos partidos curdos do Iraque. O pretexto para uma intervenção militar em larga escala da Turquia existe.
Acresce que a única região relativamente estável do Iraque atravessa um período de tensão devido ao referendo previsto para Novembro sobre a eventual integração no Curdistão de Kirkuk, a capital petrolífera do norte. Os conflitos entre curdos, árabes e turcomenos estão ao rubro no norte do Iraque. A conjuntura é, assim, propícia a um ataque militar turco.
Os militares turcos com uma intervenção em larga escala no norte do Iraque colocarão os islamitas de Erdogan numa situação insustentável aos olhos dos aliados da Nato, da União Europeia e dos investidores estrangeiros.
Não é de excluir que forcem a mão e invistam contra o Iraque quanto mais não seja para colocarem Erdogan entre a espada e a parede e o acusarem de traição à pátria.