Opinião
O outro lado da política cultural
Os promotores de um abaixo-assinado contra a anterior ministra da Cultura reclamavam que o Primeiro-Ministro prosseguisse uma política cultural «como a que foi seguida por Manuel Maria Carrilho». O pragmático José Sócrates, em parte fruto das circunstânci
Na realidade Manuel Maria Carrilho é apenas um insinuante diletante que a única coisa que fez, enquanto ministro da Cultura, foi a distribuição clientelar de subsídios. Carrilho é estimado porque, à falta de uma política cultural, procedeu à distribuição de fundos públicos por um grupo restrito – mas influente – de agentes artísticos de diversos sectores. A uns efectivamente subsidiou, a muitos outros apenas prometeu.
Passemos agora aos tempos que hoje vivemos. O actual assessor cultural do Primeiro-Ministro é Alexandre Melo, um bem informado crítico de artes plásticas que por acaso foi um dos conselheiros das aquisições do acervo de arte contemporânea da colecção Berardo; o novo ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, é um prestigiado advogado e reconhecido humanista, com boa reputação em direito comercial, por acaso até agora administrador da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo e pessoa próxima do Comendador.
Se existe uma linha Joe Berardo na área cultural, ela pode, resumidamente, descrever-se assim: Berardo é bom exemplo da utilização da cultura para criar uma imagem, obter aliados, abrir portas, ganhar legitimação e fazer negócio. O novo ministro da Cultura e o ministro da Economia têm aliás bastante a aprender com ele nesta matéria. O único problema é que o comendador quis – e conseguiu – fazer com que o Estado alinhasse num discutível negócio sobre a manutenção da sua colecção de arte contemporânea em Portugal.
Do novo ministro espera-se que não seja um novo Carrilho, que rompa com a inevitabilidade de se resumir a Cultura a uma política conjuntural de subsídios, e que tenha a coragem de implementar políticas e conseguir que o Governo encare a cultura de forma diferente. A arte e a cultura – isto é muitas vezes esquecido – são fundamentais não só para fomentar o estímulo dos sentidos e o prazer da mente, mas também para criar postos de trabalho e receitas, e ainda porque permitem a um país ganhar vantagem competitiva em relação a outros países e regiões.
As cinco áreas sensíveis
1 – O primeiro dos trabalhos do novo ministro da Cultura, por uma questão de independência de postura, devia ser o de resolver o imbróglio do enxerto do Museu Berardo no CCB, decisão precipitada que subverteu a vocação do Centro Cultural de Belém. Na realidade este ministro da Cultura está numa boa posição para juntar as peças que antes foi impossível colar: do lado do Município de Lisboa a posse de um Pavilhão de Portugal que permanece desocupado e de duas colecções (de Moda e Design) sem local para onde irem, quando fazia todo o sentido colocá-las próximas ao Museu Berardo. Um Museu Contemporâneo instalado no Pavilhão de Portugal – aberto, dinâmico e polifacetado – seria um factor agregador e um elemento de dinamização turística de toda a cidade e do país. Enquanto figura com ligações ao comendador Berardo e apoiante público do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, seria lógico que o novo ministro se empenhasse em mostrar como se podem conciliar interesses para o bem comum – uma atitude cívica que aliás José António Pinto Ribeiro gosta de professar. Este entendimento com as autarquias – estimulando o que de bom existe e evitando guerras paroquiais – podia ser peça fundamental de uma política cultural inteligente.
2 – O segundo trabalho que tem pela frente é o mais complicado de todos: convencer o Primeiro-Ministro que, antes de aumentar o orçamento da Cultura, vale a pena pensar como ele pode ser estimulado, do exterior, pelos privados. Neste domínio há várias questões, a maior parte dependente das Finanças: diminuição do IVA sobre produtos culturais, incentivos fiscais para atrair investimento nas indústrias culturais (no sentido lato, de actividades criativas, que a Comunidade Europeia tem vindo a adoptar). Vou só dar um exemplo: Portugal continua a ser dos poucos países europeus a não ter uma Film Commission nacional – e porquê? Porque sem incentivos fiscais ninguém cá virá filmar por melhor que seja a luz e o clima: basta ver que nenhum produtor internacional aceitará um IVA como o que temos.
Neste capítulo tomemos o exemplo da música gravada: o IVA é de 21% (5% em Espanha), no entanto os maiores cartazes culturais de Portugal no estrangeiro vêm da área da música: Amália, Madredeus, Marisa. Não seria interessante, rever a carga fiscal no sector por forma a estimular o consumo e o surgimento de novos artistas?
3 – No terceiro ponto da lista de preocupações vem a coordenação interministerial. Quais as áreas mais sensíveis? Para além das Finanças, já acima referidas, surge logo a Economia (que inclui o Turismo) e em que o ministro Manuel Pinho – como se viu recentemente em Madrid com a bem sucedida operação centrada na escultura de Joana Vasconcelos – tem tentado desenvolver uma estratégia baseada na criação de uma imagem, em obter aliados, abrir portas e fazer negócio – tudo com base em produtos culturais. O pior que poderia acontecer seria termos dois ministros em competição na área da Cultura: um a atribuir subsídios e outro a promover os criadores portugueses e a imagem do país.
Mas, depois, existe a área da Educação, existe a área da Comunicação (que domina o sensível e decisivo dossier do audiovisual, nomeadamente o serviço público de televisão), e existe a área dos Negócios Estrangeiros – a cultura de um país é, ou não, uma importante arma diplomática?
4 – O quarto ponto, que se prende com o MNE, é a pedra de toque para o futuro: colocar Portugal como a plataforma da divulgação da criação dos estados de língua portuguesa, um centro de difusão multicultural único na Europa.
5 – Finalmente, um outro ponto importante é a questão da salvaguarda do património mais recente. Que os Jerónimos ou o Mosteiro da Batalha merecem ser preservados, todos estão de acordo. Neste ano, em que se assinala o centenário de Maria Helena Vieira da Silva, fazia sentido que o Ministério da Cultura resolvesse a questão da integração definitiva das suas obras da colecção Jorge de Brito no espólio do Museu Arpad-Szènes-Vieira da Silva – e já agora que o Museu tivesse mais condições de funcionamento.
Esta questão remete-nos para um tema de fundo: sem dinheiro do Orçamento do Estado como resolver tudo isto? Estude-se o exemplo britânico do Art Fund, uma organização, que, baseada num regime fiscal excepcional em relação às contribuições de privados, tem por objectivo principal assegurar a compra, para depósito em museus britânicos, de peças importantes.
E já que estamos no Reino Unido sugiro que se estude bem o funcionamento do Arts Council – o organismo responsável pelos financiamentos das artes e que entre 2008 e 2011 distribuirá 1,3 mil milhões de libras, proveniente do Orçamento do Estado mas também das contribuições do jogo e da lotaria. É um sistema baseado no desempenho, na capacidade de fazer chegar a criação artística aos públicos, de fomentar mecanismos de distribuição e de marketing.
Uma interessante iniciativa do Arts Council que merecia ser vista de perto é o «Own Art», um programa de financiamento sem juros, feito em parceria com determinados bancos patrocinadores, com o objectivo de incentivar as pessoas a comprarem arte – pintura, fotografia, escultura, artes decorativas. Podem ser compradas peças entre 150 e 3000 euros, pagáveis em dez prestações mensais sem juros. O objectivo é que as pessoas possam fazer das artes parte do seu quotidiano, mas também ajudar os artistas a viver daquilo que criam.
A grande questão que se coloca ao Ministério da Cultura é a de saber se quer gerir o status quo dos concursos de subsídios e de preservação do património histórico edificado ou se, verdadeiramente, quer desenvolver novas políticas. Ou, melhor, criar pela primeira vez nos últimos anos uma política cultural articulada que potencie os equipamentos existentes, estimule a criatividade e sirva para reposicionar a imagem de Portugal no mundo.