Opinião
01 de Julho de 2012 às 23:30
O novo mapa judiciário – o dilema de Seguro
O sistema judicial precisa de perceber que as reformas são consensualizadas em largo espectro, para não cair na tentação do corporativismo partidário rotativista. Uma reforma da justiça, para ser eficaz, tem de ser feita com a autoridade adveniente dos consensos que Governo e oposição saibam gerar.
1. O novo mapa judiciário saiu da forja. A urgência parece evidente. A sensibilidade é inegável. O ensejo é de Estado. Espera-se que Governo e oposição não sejam apanhados no flagrante delito de cortar mais no acesso à Justiça ou no populismo simplista de pactuar com o imobilismo, alijando-se das suas responsabilidades sistémicas.
2. Quando tudo mudou no País - a mobilidade, a demografia, a criminalidade e a litigiosidade em geral -, o mapa dos tribunais não podia ficar prisioneiro de uma realidade que já não existe, desenhada para arbitrar questões de servidões e estremas, de sacholadas e comércio de boticas e para um tempo de uma Justiça lenta, grandiloquente, ritualista, formulária e não responsabilizável.
Nem pode ficar refém de corporativismos nefastos que desprestigiam os próprios julgadores, massacrados no mediatismo das suas ineficiências, dos seus erros, das intoleráveis delongas e das imprudentes intervenções na praça pública. Mas não é menos certo que não deve ser feito à revelia dos juízes, na contumácia governativa de desprezar o contributo dos seus agentes, que merecem, quase todos, a muita consideração do Estado.
As magistraturas não estão acima da democracia e devem respeitar as suas decisões sem reserva mental, nem despudoradas represálias sobre os decisores eleitos. Mas os políticos também não devem enxovalhar as magistraturas, a advocacia, os serviços e os agentes de polícia. Ao não dignificarem o seu papel, vulnerabilizam um dos pilares da democracia.
3. O que se espera do Governo é, pois, que saiba ouvir, construir uma oferta racional de Justiça e decidir bem. O que se espera da oposição é que tenha sentido de Estado e do estado a que isto chegou, que não cavalgue, nesta alteração, num burro de batalha. O que se exige aos magistrados e agentes de justiça é que sejam parceiros qualificados, em nome do País e não em função das suas fronteiras de conforto.
4. Faltam ainda os autarcas e os cidadãos. Não é fácil exigir-lhes compreensão para encerramentos. Num repente, toda a rede institucional que tece uma comunidade foi sendo desmantelada. Pedir-lhes que caucionem, sem mais, a desertificação institucional das suas terras é comprar guerras de manjerona. Já se conhecem resultados de outros alecrins. Se ficar claro que, mais do que uma rede de edifícios emblemáticos, mas tantas vezes de acesso caro e más prestações, é uma rede de serviços acessível e de qualidade que vamos ter, os autarcas serão parceiros.
5. O que se espera do novo mapa é que adeqúe a oferta de tribunais à procura dos serviços. Que impere uma "ratio" de gestão, mas que perceba que a boa gestão da coisa pública tem por vezes de transigir com ajustamentos pautados por critérios que não são apenas quantitativos, mas cívicos e de coesão social.
O que se espera do novo mapa é que não se esqueça que o roubo de um palmo de terra e a sacholada são tão ingentes na cidadania, como o crime económico e sofisticado, os telemóveis ou as falências. Que coloque os meios humanos onde eles forem mais precisos. Que o faça de forma flexível e digna. Que encare de frente os atrasos esmagadores e que compre essas guerras com comandos de magistrados.
6. A proposta do Governo contém virtualidades e não tem de ser cauterizada apenas porque é do Governo. O País precisa de uma oposição que assuma o risco de ser construtiva. Já tivemos demasiadas denúncias eleitoralistas de pactos para a Justiça. O sistema judicial precisa de perceber que as reformas são consensualizadas em largo espectro, para não cair na tentação do corporativismo partidário rotativista. Uma reforma da justiça, para ser eficaz, tem de ser feita com a autoridade adveniente dos consensos que Governo e oposição saibam gerar.
7. A proposta do Governo assenta numa estratégia correcta: o alargamento da base territorial das comarcas (mas retoma os moribundos distritos ), a generalização da especialização e a optimização dos recursos humanos.
Importa que não desconsidere as especificidades locais. O "zoom" pode permitir corrigir. Importa que a cultura de gestão se instale definitivamente. Importa que os enormes progressos efectuados na informatização do sistema, nas virtualidades da desmaterialização e na simplificação administrativa não sejam minados pela obsolescência dos meios ou a falta de consumíveis. Importa que a anunciada reforma do Código de Processo Civil, em nome da celeridade, não seja uma eternidade.
8. O novo mapa processual por si só não vai mudar a Justiça. Mas é um instrumento necessário. Se António José Seguro perceber isso e souber construir uma narrativa construtiva e consistente sobre ele, em vez de cair no facilitismo "marinhopintista" de cruzada contra a ministra, talvez possamos vir a ter, mais cedo do que tarde - e já muito tarda, uma rede de serviços de justiça adequada aos nossos tempos.
O dilema é esse: fazer oposição em favor do País ou fazer oposição só por fazer.
Docente da Faculdade de Direito de Lisboa
2. Quando tudo mudou no País - a mobilidade, a demografia, a criminalidade e a litigiosidade em geral -, o mapa dos tribunais não podia ficar prisioneiro de uma realidade que já não existe, desenhada para arbitrar questões de servidões e estremas, de sacholadas e comércio de boticas e para um tempo de uma Justiça lenta, grandiloquente, ritualista, formulária e não responsabilizável.
As magistraturas não estão acima da democracia e devem respeitar as suas decisões sem reserva mental, nem despudoradas represálias sobre os decisores eleitos. Mas os políticos também não devem enxovalhar as magistraturas, a advocacia, os serviços e os agentes de polícia. Ao não dignificarem o seu papel, vulnerabilizam um dos pilares da democracia.
3. O que se espera do Governo é, pois, que saiba ouvir, construir uma oferta racional de Justiça e decidir bem. O que se espera da oposição é que tenha sentido de Estado e do estado a que isto chegou, que não cavalgue, nesta alteração, num burro de batalha. O que se exige aos magistrados e agentes de justiça é que sejam parceiros qualificados, em nome do País e não em função das suas fronteiras de conforto.
4. Faltam ainda os autarcas e os cidadãos. Não é fácil exigir-lhes compreensão para encerramentos. Num repente, toda a rede institucional que tece uma comunidade foi sendo desmantelada. Pedir-lhes que caucionem, sem mais, a desertificação institucional das suas terras é comprar guerras de manjerona. Já se conhecem resultados de outros alecrins. Se ficar claro que, mais do que uma rede de edifícios emblemáticos, mas tantas vezes de acesso caro e más prestações, é uma rede de serviços acessível e de qualidade que vamos ter, os autarcas serão parceiros.
5. O que se espera do novo mapa é que adeqúe a oferta de tribunais à procura dos serviços. Que impere uma "ratio" de gestão, mas que perceba que a boa gestão da coisa pública tem por vezes de transigir com ajustamentos pautados por critérios que não são apenas quantitativos, mas cívicos e de coesão social.
O que se espera do novo mapa é que não se esqueça que o roubo de um palmo de terra e a sacholada são tão ingentes na cidadania, como o crime económico e sofisticado, os telemóveis ou as falências. Que coloque os meios humanos onde eles forem mais precisos. Que o faça de forma flexível e digna. Que encare de frente os atrasos esmagadores e que compre essas guerras com comandos de magistrados.
6. A proposta do Governo contém virtualidades e não tem de ser cauterizada apenas porque é do Governo. O País precisa de uma oposição que assuma o risco de ser construtiva. Já tivemos demasiadas denúncias eleitoralistas de pactos para a Justiça. O sistema judicial precisa de perceber que as reformas são consensualizadas em largo espectro, para não cair na tentação do corporativismo partidário rotativista. Uma reforma da justiça, para ser eficaz, tem de ser feita com a autoridade adveniente dos consensos que Governo e oposição saibam gerar.
7. A proposta do Governo assenta numa estratégia correcta: o alargamento da base territorial das comarcas (mas retoma os moribundos distritos ), a generalização da especialização e a optimização dos recursos humanos.
Importa que não desconsidere as especificidades locais. O "zoom" pode permitir corrigir. Importa que a cultura de gestão se instale definitivamente. Importa que os enormes progressos efectuados na informatização do sistema, nas virtualidades da desmaterialização e na simplificação administrativa não sejam minados pela obsolescência dos meios ou a falta de consumíveis. Importa que a anunciada reforma do Código de Processo Civil, em nome da celeridade, não seja uma eternidade.
8. O novo mapa processual por si só não vai mudar a Justiça. Mas é um instrumento necessário. Se António José Seguro perceber isso e souber construir uma narrativa construtiva e consistente sobre ele, em vez de cair no facilitismo "marinhopintista" de cruzada contra a ministra, talvez possamos vir a ter, mais cedo do que tarde - e já muito tarda, uma rede de serviços de justiça adequada aos nossos tempos.
O dilema é esse: fazer oposição em favor do País ou fazer oposição só por fazer.
Docente da Faculdade de Direito de Lisboa
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