Opinião
17 de Novembro de 2009 às 11:47
O imperativo do combate à fome
São muitas as cimeiras previstas este ano, mas a Cimeira Mundial sobre a Segurança Alimentar merece uma especial atenção. Este encontro, que ontem começou em Roma e que termina amanhã, dará um impulso político imprescindível a três questões estreitamente...
São muitas as cimeiras previstas este ano, mas a Cimeira Mundial sobre a Segurança Alimentar merece uma especial atenção. Este encontro, que ontem começou em Roma e que termina amanhã, dará um impulso político imprescindível a três questões estreitamente interligadas que se incluem entre os principais desafios deste século: segurança alimentar, biodiversidade e alterações climáticas.
Estamos a fracassar colectivamente na luta contra a fome no mundo. Actualmente, mais de mil milhões de pessoas de todo o mundo carecem de comida suficiente para atenderem às suas necessidades nutricionais diárias e a situação nos países em desenvolvimento piora de dia para dia.
Esta situação é, antes de mais, um verdadeiro escândalo moral. Como é possível que, em pleno século XXI, quando o Homem já foi à lua e voltou, ainda não tenhamos sido capazes de alimentar todos os habitantes do nosso planeta? Os responsáveis políticos devem reconhecer, além disso, que a insegurança alimentar está associada aos persistentes efeitos da crise económica e às alterações climáticas em curso e que constitui uma ameaça real para a nossa sociedade no seu conjunto.
Sejamos justos: é verdade que os líderes mundiais reagiram a esta situação. Na recente cimeira do G-8 em L'Aquila, Itália, assumimos o firme compromisso de "actuar na escala e com a urgência necessárias para alcançar a segurança alimentar global" e comprometemo-nos colectivamente a desembolsar um total de 20 mil milhões de dólares ao longo de três anos.
Trata-se de um compromisso considerável, mas que poderá não ser suficiente - é preciso fazer ainda mais para aumentar a produção agrícola, para liberalizar o potencial comercial de maneira a reforçar a segurança alimentar e para gerir o crescente impacto das alterações climáticas sobre a agricultura.
Também a Comissão Europeia reagiu positivamente, ao libertar - através de diferentes instrumentos - meios financeiros destinados a promover a segurança alimentar. O "mecanismo alimentar" da União Europeia, adoptado no ano passado, mobiliza actualmente 2,5 mil milhões de dólares suplementares para ajudar a uma rápida resposta à escalada dos preços dos alimentos. E injectaremos mais 4 mil milhões de dólares nos próximos três anos para financiar actividades destinadas a ajudar os países a melhorarem a sua segurança alimentar e a adaptarem-se às alterações climáticas.
O aumento da dotação financeira destinada a combater, entre outros, os problemas de segurança alimentar, deveria ser um dos principais resultados dos programas financeiros vigorosamente apoiados pela UE com vista ao próximo evento crucial no calendário das cimeiras deste ano: a Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a realizar em Copenhaga no próximo mês. Tanto as alterações dos padrões climáticos como a crescente magnitude e a frequência dos fenómenos climáticos extremos vão exigir investimentos substanciais se quisermos que os agricultores possam adaptar-se com êxito à nova situação.
Os mais pobres são os mais duramente afectados por estas alterações e as tendências globais dissimulam profundas disparidades regionais.
Os pequenos agricultores, em particular nos países em desenvolvimento, serão as primeiras vítimas das alterações climáticas. Se não agirmos rapidamente, os 40 países mais pobres do mundo, principalmente na África Subsaariana e na América Latina, perderão até 2080 entre 10% e 20% da sua capacidade de produção de cereais de base devido à seca.
Mas as soluções para este problema estão ao nosso alcance. O impacto da biodiversidade não é muitas vezes, compreendido na sua plenitude, o que significa que também subavaliamos o seu contributo para lidarmos com os desafios globais. Quanto mais diversas são as formas de vida num determinado ecossistema, maior é a sua capacidade de reacção face à mudança.
Assim sendo, a biodiversidade pode actuar como uma "apólice de seguro" natural contra as alterações repentinas no meio ambiente e amortecer as perdas causadas por elas (assim como as que são causadas pelas pragas e doenças). A biodiversidade desempenha um papel essencial para uma produção alimentar de longo prazo fiável e estável. A fome que assolou a Irlanda no século XIX e a Etiópia no século XX demonstram claramente a vulnerabilidade das culturas não diversificadas às alterações ambientais e as consequências dramáticas dessa vulnerabilidade para a população.
A diversidade das culturas oferece igualmente importantes vantagens para o ecossistema. As variedades resistentes à seca e às inundações não só aumentam a produtividade como também podem evitar a erosão do solo e a desertificação. No Sul do Gana, por exemplo, os agricultores conseguiram reduzir o número de más colheitas resultantes do carácter variável e imprevisível das precipitações, através do cultivo de diferentes variedades de uma mesma espécie, resistentes à seca. Além disso, a diversificação das culturas reduziu a necessidade dos dispendiosos e pesticidas, que também são nocivos para o meio ambiente.
Por isso, estou convencido que convém apostar na biodiversidade para lutar contra as alterações climáticas e a insegurança alimentar e que temos de prestar mais atenção a este assunto.
Esta semana, no encontro de líderes em Roma, espero que consigamos definir unanimemente quais são as principais prioridades para combatermos a fome e a insegurança alimentar, e - mais particularmente - espero que cheguemos a acordo quanto à designação de uma autoridade encarregada de assessorar os governos e as instituições internacionais em matéria de segurança alimentar. Com efeito, precisamos nesta matéria de fazer aquilo que o Painel Intergovernamental das Nações Unidas fez em relação às alterações climáticas: um sistema de alerta vermelho para o planeta, baseado em constatações científicas. Comprometo-me, no início do meu novo mandato de cinco anos na Comissão Europeia, a continuar a fazer tudo o que me for possível para promover esse assunto crucial.
Mas mesmo as melhores e mais actualizadas políticas de financiamento continuarão a ser inúteis se os governos nos países em desenvolvimento não conseguirem traduzir os seus compromissos em dinheiro efectivo e em maiores investimentos no sector agrícola à escala mundial.
Deixemos, pois, que a Cimeira Mundial sobre Segurança Alimentar apresente uma prova palpável de um compromisso de todos os governos em prol de um objectivo comum: um mundo sem fome. A História não deixará de nos julgar desfavoravelmente se falharmos.
José Manuel Barroso é presidente da Comissão Europeia.
Nota: Para o podcast deste texto em inglês, use o seguinte "link":
http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/20091111Barroso.mp3
© Project Syndicate, 2009.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
Estamos a fracassar colectivamente na luta contra a fome no mundo. Actualmente, mais de mil milhões de pessoas de todo o mundo carecem de comida suficiente para atenderem às suas necessidades nutricionais diárias e a situação nos países em desenvolvimento piora de dia para dia.
Sejamos justos: é verdade que os líderes mundiais reagiram a esta situação. Na recente cimeira do G-8 em L'Aquila, Itália, assumimos o firme compromisso de "actuar na escala e com a urgência necessárias para alcançar a segurança alimentar global" e comprometemo-nos colectivamente a desembolsar um total de 20 mil milhões de dólares ao longo de três anos.
Trata-se de um compromisso considerável, mas que poderá não ser suficiente - é preciso fazer ainda mais para aumentar a produção agrícola, para liberalizar o potencial comercial de maneira a reforçar a segurança alimentar e para gerir o crescente impacto das alterações climáticas sobre a agricultura.
Também a Comissão Europeia reagiu positivamente, ao libertar - através de diferentes instrumentos - meios financeiros destinados a promover a segurança alimentar. O "mecanismo alimentar" da União Europeia, adoptado no ano passado, mobiliza actualmente 2,5 mil milhões de dólares suplementares para ajudar a uma rápida resposta à escalada dos preços dos alimentos. E injectaremos mais 4 mil milhões de dólares nos próximos três anos para financiar actividades destinadas a ajudar os países a melhorarem a sua segurança alimentar e a adaptarem-se às alterações climáticas.
O aumento da dotação financeira destinada a combater, entre outros, os problemas de segurança alimentar, deveria ser um dos principais resultados dos programas financeiros vigorosamente apoiados pela UE com vista ao próximo evento crucial no calendário das cimeiras deste ano: a Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a realizar em Copenhaga no próximo mês. Tanto as alterações dos padrões climáticos como a crescente magnitude e a frequência dos fenómenos climáticos extremos vão exigir investimentos substanciais se quisermos que os agricultores possam adaptar-se com êxito à nova situação.
Os mais pobres são os mais duramente afectados por estas alterações e as tendências globais dissimulam profundas disparidades regionais.
Os pequenos agricultores, em particular nos países em desenvolvimento, serão as primeiras vítimas das alterações climáticas. Se não agirmos rapidamente, os 40 países mais pobres do mundo, principalmente na África Subsaariana e na América Latina, perderão até 2080 entre 10% e 20% da sua capacidade de produção de cereais de base devido à seca.
Mas as soluções para este problema estão ao nosso alcance. O impacto da biodiversidade não é muitas vezes, compreendido na sua plenitude, o que significa que também subavaliamos o seu contributo para lidarmos com os desafios globais. Quanto mais diversas são as formas de vida num determinado ecossistema, maior é a sua capacidade de reacção face à mudança.
Assim sendo, a biodiversidade pode actuar como uma "apólice de seguro" natural contra as alterações repentinas no meio ambiente e amortecer as perdas causadas por elas (assim como as que são causadas pelas pragas e doenças). A biodiversidade desempenha um papel essencial para uma produção alimentar de longo prazo fiável e estável. A fome que assolou a Irlanda no século XIX e a Etiópia no século XX demonstram claramente a vulnerabilidade das culturas não diversificadas às alterações ambientais e as consequências dramáticas dessa vulnerabilidade para a população.
A diversidade das culturas oferece igualmente importantes vantagens para o ecossistema. As variedades resistentes à seca e às inundações não só aumentam a produtividade como também podem evitar a erosão do solo e a desertificação. No Sul do Gana, por exemplo, os agricultores conseguiram reduzir o número de más colheitas resultantes do carácter variável e imprevisível das precipitações, através do cultivo de diferentes variedades de uma mesma espécie, resistentes à seca. Além disso, a diversificação das culturas reduziu a necessidade dos dispendiosos e pesticidas, que também são nocivos para o meio ambiente.
Por isso, estou convencido que convém apostar na biodiversidade para lutar contra as alterações climáticas e a insegurança alimentar e que temos de prestar mais atenção a este assunto.
Esta semana, no encontro de líderes em Roma, espero que consigamos definir unanimemente quais são as principais prioridades para combatermos a fome e a insegurança alimentar, e - mais particularmente - espero que cheguemos a acordo quanto à designação de uma autoridade encarregada de assessorar os governos e as instituições internacionais em matéria de segurança alimentar. Com efeito, precisamos nesta matéria de fazer aquilo que o Painel Intergovernamental das Nações Unidas fez em relação às alterações climáticas: um sistema de alerta vermelho para o planeta, baseado em constatações científicas. Comprometo-me, no início do meu novo mandato de cinco anos na Comissão Europeia, a continuar a fazer tudo o que me for possível para promover esse assunto crucial.
Mas mesmo as melhores e mais actualizadas políticas de financiamento continuarão a ser inúteis se os governos nos países em desenvolvimento não conseguirem traduzir os seus compromissos em dinheiro efectivo e em maiores investimentos no sector agrícola à escala mundial.
Deixemos, pois, que a Cimeira Mundial sobre Segurança Alimentar apresente uma prova palpável de um compromisso de todos os governos em prol de um objectivo comum: um mundo sem fome. A História não deixará de nos julgar desfavoravelmente se falharmos.
José Manuel Barroso é presidente da Comissão Europeia.
Nota: Para o podcast deste texto em inglês, use o seguinte "link":
http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/20091111Barroso.mp3
© Project Syndicate, 2009.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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