Opinião
O fim das patentes ou a tentação africana
Numa recente entrevista a um jornal diário, o presidente do Conselho Directivo do Infarmed profetizou a extinção das patentes de produtos farmacêuticos, colocando o tema numa perspectiva que tem tanto de controversa como de original.
As razões do extermínio das patentes prender-se-iam, a seu ver, com uma disfunção revelada pela indústria farmacêutica de investigação, a qual teria tendência para “valorizar as áreas comercialmente rentáveis”, em detrimento das “necessidades de saúde pública e dos doentes”.
A solução para essa disfunção seria “juntar a indústria, os centros de investigação e as próprias autoridades num esforço com os critérios, dirigido para doenças onde os remédios são necessários”, abolindo-se depois as patentes.
Esta aversão do presidente do Infarmed pelas as patentes é tanto estranha como infundamentada.
Ninguém desconhece que a propriedade industrial desempenha uma função de primordial importância na viabilização das actividades de investigação e desenvolvimento, nomeadamente no campo da indústria farmacêutica, tendo permitido avanços gigantescos na melhoria da saúde pública e no aumento de esperança de vida das pessoas.
Também não constitui novidade o facto de que a investigação na área farmacêutica tem sido levada a cabo exclusivamente pela indústria farmacêutica, pela muito simples razão de que as autoridades públicas não têm vocação nem meios para desempenhar tal tarefa.
Como o presidente do Infarmed reconhece, um medicamento, quando chega ao mercado, tem atrás dele um custo de cerca de mil milhões de dólares.
Nenhum Estado está disposto, mesmo em parcerias com entidades privadas, a gastar milhares e milhares de milhões de dólares do dinheiro dos contribuintes em “investigação falhada”, na miragem de encontrar uma nova molécula que preencha uma lacuna terapêutica.
Essa actividade tem de continuar, pela própria natureza das coisas, reservada ao sector privado e a propriedade industrial, como garante do êxito da mesma, continuará a desempenhar o papel de sucesso que até aqui tem tido.
Portugal foi um dos primeiros países do Mundo a reconhecerem e a proteger constitucionalmente a propriedade industrial, o que fez expressamente na Carta Constitucional de 1826.
O nosso país sempre manteve, desde então, ao menos no campo dos princípios jurídicos, a sua fidelidade ao enunciado em 1826 e a ordem jurídica nacional consistentemente acolheu a propriedade industrial, a qual é hoje considerada como um direito fundamental directamente protegido pela Constituição.
Nas últimas décadas, Portugal reafirmou o seu desígnio de proteger a propriedade industrial, nomeadamente, na sua vertente das patentes farmacêuticas.
Fê-lo quando aderiu às Comunidade Europeias, em 1985, ao comprometer-se, no Tratado de Adesão, “a tornar, a partir da adesão, a sua legislação sobre patentes compatível com os princípios da livre circulação de mercadorias e com o nível de protecção da propriedade industrial alcançado na Comunidade”.
Reiterou-o, ao aderir em 1992, à Convenção de Munique sobre a Patente Europeia e ao aprovar o novo Código da Propriedade Industrial de 1995, alargando, por essa via, o âmbito da cobertura das patentes farmacêuticas em Portugal, o que veio a ser confirmado pelo posterior código de 2003.
Tornou a afirmá-lo, ao ratificar, em 1994, o Acordo que criou a Organização Mundial do Comércio, ao subscrever, no seu Anexo 1C, vulgarmente designado por TRIPS, o princípio do alargamento da protecção dada pelas patentes a “quaisquer invenções, quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que essas invenções sejam novas, envolvam uma actividade inventiva e sejam susceptíveis de aplicação industrial”.
Como, porém, infelizmente, acontece noutras áreas da actividade em Portugal, a prática desmente os princípios constantes da lei, e, deste modo, os titulares de direitos de propriedade industrial não vêm tais direitos ser eficazmente reconhecidos e tutelados quer pelos Tribunais quer pela Administração Pública.
O Tribunal de Comércio de Lisboa, que é aquele que decide o maior número de acções derivadas de violação de patentes, demora, por manifesto excesso de trabalho, mais de um ano para julgar as providências cautelares destinadas a impedir o lançamento no mercado de medicamentos violadores de patentes, o que torna tais julgamentos, em inúmeros casos, praticamente inúteis, mesmo que favoráveis aos titulares dessas patentes.
O Infarmed, no seu afã de aumentar o número de medicamentos genéricos, os quais, inclusivamente, promove em campanhas publicitárias, licencia a comercialização desses medicamentos, mesmo quando não desconhece serem infractores de patentes em vigor.
O presidente do Infarmed queixa-se, na entrevista que deu, de que os investimentos em investigação farmacêutica se deslocaram da Europa para os EUA, dando, para isso, justificações ligadas ao funcionamento do mercado e aos constrangimentos derivados do modelo social europeu.
O que se não diz nessa entrevista é que a indústria de investigação, nos EUA, se sente eficazmente protegida por um sistema legal que tutela os direitos de propriedade industrial ligados a medicamentos – e é respeitado pela instituição congénere do Infarmed, o FDA – implementado mecanismos tendentes a que os produtos violadores de patentes vejam barrada a sua entrada no mercado.
E a verdade é que o projecto português é, ou deveria ser, o da aposta na inovação, consagrada, em 2000, pela Estratégia de Lisboa, e definida como o único caminho viável para o relançamento das empresas europeias. Ou, o que é o mesmo, o do Programa do actual Governo, o qual estabelece que “a agenda do Governo para retomar o crescimento da nossa economia, de modo a integrá-la na sociedade do conhecimento, consiste em (?) convocar o País para a inovação”.
Mas como é possível, com um mínimo de credibilidade, convocar os agentes económicos para a inovação, quando, um alto responsável da Administração Pública defende nos jornais o fim do único instrumento jurídico conhecido apto a proteger essa mesma inovação?
É certo que se pode invocar, com o fez o presidente do Infarmed na sua entrevista, o exemplo dos países africanos onde, por razões financeiras, se incentiva o desrespeito das patentes de medicamentos.
O exemplo é, porém, infeliz.
Os países africanos poderão não ser muito respeitadores das patentes mas também não consta que constituam pólos de atracção de investimentos em matéria de investigação farmacêutica ou exemplos de desenvolvimento económico e social a seguir pelo nosso País.