Opinião
O dever da memória
A amnésia história é uma estratégia ideológica dos poderes que, apenas, se reclamam do presente – e o impõem como normativa. Pouco ou nada se sabe daqueles que, nos períodos mais negros da nossa História, desenharam a fisionomia moral e intelectual do Paí
"Dos que se antigamente mais prezaram
todos os que escreveram, foy honrar
a própria língua, e nisso trabalharam"
António Ferreira - Liv. I. Cart. 3.ª
A amnésia história é uma estratégia ideológica dos poderes que, apenas, se reclamam do presente – e o impõem como normativa. Pouco ou nada se sabe daqueles que, nos períodos mais negros da nossa História, desenharam a fisionomia moral e intelectual do País. É um rol onde figuram nomes admiráveis de uma cultura que nenhum tirano conseguiu aniquilar por completo: cientistas, prosadores, poetas, cineastas, dramaturgos, jornalistas, pintores, actores, médicos, investigadores de múltiplos ramos.
Apenas por terem, no final da II Grande Guerra, assinado petições e protestos, manifestos da Oposição democrática ou, simplesmente, manifestado incompatibilidade com a política de Salazar, centenas de intelectuais foram demitidos dos seus cargos, presos, perseguidos. É um inominável crime de lesa-pátria. A Resistência cultural portuguesa foi, no dizer do grande jornalista republicano Carlos Ferrão, “uma demonstração de grandeza moral incomparável na Europa dos fascismos”. Mas o apagamento dessa virtude maior tem sido sistemático. A pedagogia da História não interessa a quem não está interessado na questionação das origens do seu próprio poder.
Sobre este e outros temas afins discorri, há dias, com o meu velho e querido amigo Fernando Paulouro, director do “Jornal do Fundão”. Para quem não saiba, o “Jornal do Fundão” é uma honra da Imprensa portuguesa, e o seu director um dos maiores jornalistas contemporâneos. Manejando o idioma com a destreza e o amor de quem frequenta os clássicos, e neles recolhe o poder da sua magnitude, Fernando Paulouro publica, semanalmente, textos raros, pela dignidade, pela coragem, pela ética – e pela gramática. Falámos sobre a necessidade da memória. Admitindo, a seguir, que a memória está a ser dissolvida pela falsa memória do computador e da Internet e para quem é incómoda. O déspota abomina a memória, pela ameaça que representa. Milan Kundera disse-o [”O Livro do Riso e do Esquecimento”], acaso melhor do que qualquer outro: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.”
Já poucos sabem quem foi (é) José Gomes Ferreira, o autêntico, um dos poetas fundamentais do século XX. Aquilino, Tomaz de Figueiredo, Carlos de Oliveira, Nemésio, Miguel Torga, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, José Cardoso Pires, Nuno Bragança, Augusto Abelaira, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Antunes da Silva, Garibaldino de Andrade, Sebastião da Gama, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves, João Apolinário, João Gaspar Simões, Domingos Monteiro, João Pedro de Andrade, Álvaro Salema, Joel Serrão, Vitorino de Magalhães Godinho, Vitorino de Magalhães Vilhena, Manuel Valadares, Bento de Jesus Caraça, Abel Salazar, Alexandre Pinheiro Torres, Alexandre O’Neill, Ruy Belo, Branquinho da Fonseca, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Armindo Rodrigues, Irene Lisboa, Maria Archer, Natália Correia, Fernanda Botelho, Maria Judite de Carvalho, Ary dos Santos. Se alguns destes persistem na lembrança delida é, sobretudo, pelas suas eventuais excentricidades, por características que nada têm a ver com a literatura, com a herança legada, com a dimensão da sua entrega.
O rol dos nossos esquecimentos elabora as omissões à nossa própria História. “Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo.” A citação, agora, pertence a George Santayana, e permite que reflictamos sobre as nossas negligências culturais e políticas, dando ensejo à destruição sistematizada do inventário colectivo e à criação de um monstruoso sistema de domínio.
Fernando Paulouro não se cansa de nos alertar para as perversões de uma sociedade extraviada na mercantilização dos próprios sentimentos. Aqueles que referi, e de que falámos, propunham o conhecimento, a paixão e a vontade como criadores de uma sociedade de tolerância, em oposição ao salazarismo. O fundador do “Jornal do Fundão”, António Paulouro (tio do Fernando) fora, a princípio, simpatizante do Estado Novo. Cedo se lhe opusera, sem jamais se arrogar a presunção de que dispunha de verdade única. E abriu as colunas do semanário a todas as correntes de opinião: de José Hermano Saraiva a José Saramago. A lista de colaboradores do jornal é impressionante, e creio que incomum, pela quantidade e pela qualidade dos nomes. Estão lá todos os melhores da cultura portuguesa. E António Paulouro pagou caríssimo o destemor de ser um homem livre. Livre, talentoso, culto, honrado e de extrema generosidade. O sobrinho herdou-lhe as virtudes. Nunca, como o tio, desejou possuir o monopólio da razão das razões. Mas também, como o tio, nunca abdicou das convicções, continuando o magistério irrefutável contido na essência do “Jornal do Fundão” – combatendo o esquecimento, nunca omitindo aqueles que ergueram os marcos das nossas construções morais, e sem nunca perder de vista as exigências e os prestígios da modernidade.
A amnésia história é (repito) um projecto ideológico para a sustentação de um programa de poder reaccionário. Há muito para saber, e o homem pode e tem o direito de saber. Como poucos periódicos portugueses o “Jornal do Fundão” consigna o princípio de considerar a razão do outro, porque reconhece que o outro pode estar convencido de dispor de “outra” razão, cujo testemunho deseja prestar. E enquanto a chamada “grande Imprensa” promove a mediocridade resultante da sua própria, as páginas do semanário da Beira Interior continuam, galhardamente, a batalha contra o esquecimento.
A simples enunciação das derivas da ignorância, e o lembrete daqueles que integraram as nossas configurações éticas, estéticas e ideológicas reenviam-nos às origens dos pessoais relaxamentos. Conversámos, o Fernando Paulouro e eu, pela tarde fora, com o tempo suficiente para o não perdermos. O esquecimento traz a incivilidade e desemboca na incoerência social. A época em que vivemos é propícia ao desaparecimento do lugar simbólico, e o poder tem a tendência de diminuir e de apagar os nossos registos. Que este artigo fique, pois, e somente, como um voto de homenagem a um semanário e a um jornalista por igual honrados e livres.