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O desassossego tecnológico

Se há algo que caracteriza o nosso mundo é o sentimento generalizado de instabilidade. O que se explica de muitas maneiras e se atribui às mais variadas causas. Alguns falam do declínio das nações que gera a sensação de perda de identidade; outros do novo

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O que se explica de muitas maneiras e se atribui às mais variadas causas. Alguns falam do declínio das nações que gera a sensação de perda de identidade; outros do novo capitalismo global que provoca desemprego e precariedade em toda a parte; no aumento da mobilidade humana que amplia conflitos entre diferentes culturas e comportamentos; na crise ambiental; no alastramento da miséria e da exclusão com o inevitável crescimento da criminalidade associada; e, acima de tudo, no papel dos media, através de uma incessante exploração mórbida da desgraça e do negativismo.

Será assim. Mas, mais do que tudo isto junto, as chamadas novas tecnologias constituem hoje a grande fonte da instabilidade. São elas aliás que estão na origem de alguns dos factores referidos.

A tecnologia sempre foi uma ameaça ao que está. A inovação tecnológica resulta inevitavelmente no extermínio de muita actividade económica e humana. São as profissões que perdem utilidade prática, o encerramento de fábricas tornadas subitamente obsoletas, os modos de vida que, tal como os animais e plantas, se extinguem por brutal alteração ambiental. No curto espaço de poucas décadas, certos mundos sofreram impressionantes mutações.

Imagine-se a sorte do tipógrafo que aprendeu a manejar diligentemente o linótipo, compondo letra a letra textos como este e que, de súbito, se teve de readaptar ao domínio do offset e do fotolito, para logo de seguida se ver perante a tremenda revolução dos computadores e dos processos digitais. Quantos foram capazes de sobreviver a tanta reciclagem? Ou ainda, para ficar neste domínio, pense-se no destino das fábricas da famosa e muito revolucionária “letra-set” que rebentou com o constrangimento das colunas e libertou grafismos. Ou no ardina, que percorria a cidade dobrando os jornais como um boomerang que era atirado logo pela manhã para a nossa varanda.

Tudo extinto em muito menos do tempo de uma vida. E que dizer dos professores, aqueles que têm por missão transmitir um conhecimento que agora se desactualiza diariamente? Ou de tantas outras profissões e saberes que simplesmente desapareceram, alfaiates, costureiras, varinas, dactilógrafas, telefonistas, cartógrafos.

Nada que não tenha acontecido desde os primórdios. Contudo, sendo certo que a inovação tecnológica sempre gera mudanças que muitos não são capazes de acompanhar, a revolução digital, expressa nas chamadas novas tecnologias, representa um novo tipo de instabilidade que afecta as vidas de todos. Já que, neste caso, não se trata de simples alterações produtivas, mas de um processo que assenta na própria instabilidade permanente. O novo universo digital é mutante por natureza.

Instável nos produtos e aplicações. Quantos modelos de telemóveis não nos passaram pelas mãos na última década? Quantos computadores não fomos obrigados a adquirir só para nos mantermos minimamente actualizados. Eu que sou da geração do Spectrum já lhes perdi a conta. Quantas linguagens e sistemas operativos tivemos de aprender para logo tudo ter de reaprender passados poucos meses? Que saltos conceptuais não fomos obrigados a dar, desde os excitantes BBS dos anos 80, às sucessivas evoluções da Internet? Que exigências físicas e mentais não nos foram impostas por ratinhos, teclados e monitores? Quantas canetas e envelopes não foram deitados para o lixo com a disseminação dos emails? E isto só no plano da vida corrente e para não falar de todos os grandes medos associados às novas tecnologias: o domínio das máquinas, a manipulação genética, a extinção catastrófica.

No novo mundo digital, nada é estável nem seguro. O desassossego é a condição por excelência do sistema. Um desassossego que naturalmente alastra para as vidas quotidianas gerando fenómenos de resistência e conflitualidade. Potenciando sentimentos do tempo irremediavelmente perdido, expresso em discursos do antigamente é que era bom, ampliando a aversão a essa mudança que tanto afecta o bairro ou a aldeia onde nascemos quanto as ideias que nos fizeram. Desassossego esse que vai povoando o planeta com multidões de gente confusa e inadaptada pronta a agarrar-se a qualquer coisa de aparentemente seguro ou fiável: a nossa terra, a tradição, as religiões. Numa pura ilusão.

Tanto mais que, embora do ponto de vista individual a situação seja tantas vezes dramática, se pensarmos em termos de sociedade humana ela significa um enorme salto evolutivo. A instabilidade é a característica mais comum da evolução. É à “beira do caos”, segundo expressão de Christopher Langton, que as coisas realmente acontecem.

Ao mesmo tempo que a revolução digital vem provocando grandes convulsões sociais, por outro lado ela representa uma efectiva aceleração e amplificação das capacidades humanas. Nunca como hoje o saber e a inteligência estiveram tão disponíveis, para uso imediato, por um tão vasto número de pessoas no planeta. Nunca tantos tiveram acesso aos meios da inovação e nela participaram activamente. Nunca a engrenagem da mudança e do desenvolvimento foi tão dinâmica.

A instabilidade não é uma desgraça, é um modelo de criatividade. O desassossego tecnológico não é um mal, é a condição cultural do homem na nossa era.

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