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20 de Fevereiro de 2004 às 11:06

O défice de Pitágoras

E se isto vos confunde, caros leitores, imaginem a confusão que vai ser no ECOFIN. Fica definitivamente provado, se mais fosse preciso, que ninguém percebe o défice orçamental português.

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Tive uma certa dificuldade em perceber porque é que toda a gente diz que se o Orçamento do Estado for feito em duas fases o défice é menor. Não tem lógica nenhuma.Ou o Governo quer reduzir o défice e tanto faz uma fase como cinquenta, ou não quer, e nem que as fases sejam mil lá vamos.

Esta coisa de haver duas fases para fazer o Orçamento parece história de preguiçosos, deixar para amanhã a segunda fase que se pode fazer hoje. Mas mesmo assim resolvi pensar seriamente nesta coisa, não fosse ser uma daquelas modernices que surpreende e que afinal funciona.

E não é que fiquei mesmo surpreendido? Aqui vos deixo, meus queridos leitores, o notável resultado a que cheguei. Para começar, admiti que havia duas fases. E admiti também que o défice anual seria de 4%, o que é uma boa redução sobre os cinco e tal de 2003.

Será que as duas fases me permitiam chegar a um défice inferior a 3%, como convém? À falta de melhor, parti do princípio que as duas fases eram iguais, cada uma correspondendo a metade do ano. Se o défice evoluísse linearmente, teríamos 2% de défice na primeira fase, a primeira metade do ano, e 2% na segunda fase, a segunda metade do ano.

Temos assim a figura 1, que apresento de seguida, e onde em cada eixo se mede o défice de uma fase.

<Figura 1>  Assim, primeiro teríamos um movimento do ponto O, a origem, até ao ponto a, a meio do ano, quando o défice é 2%, e depois para d, no final do ano, quando ao défice se somam mais 2% para atingir os 4%.

Ou seja, o défice é igual a D1+D2, os défices em cada fase, pelo que será 4% (igual a 2% mais 2%, correspondendo ao ponto d da figura). Mas porquê ficarmos por duas fases? Imagine-se que dividimos cada uma destas fases em duas fases iguais. Quanto será o défice neste caso?

A figura 2 responde a essa questão.

<Figura 2> Assim, nesta figura começamos por nos deslocar para o ponto a, a primeira metade da primeira fase, onde temos um défice de 1%. Segue-se um movimento para b, a segunda metade da primeira fase, onde o défice atinge 1% nesta fase e 2% no total.

Depois temos novamente uma primeira metade, mas da segunda fase, deslocando-nos para c, com mais 1% de défice, chegando o total a 3%. E finalmente, temos um movimento para d, onde o défice total vai atingir de novo 4%. Temos então neste caso quatro fases e, como no caso das duas fases, não há economia, o défice anual continua a ser 4%.

Poderíamos agora continuar a multiplicar o número de fases. Mas é fácil de ver que como temos de nos deslocar até ao ponto d, qualquer que seja o número de fases temos sempre que nos deslocar dois na horizontal e dois na vertical, pelo que a soma será 4, isto é, o défice será sempre 4%.

Temos assim o Primeiro Teorema do Orçamento por Fases: se o número de fases for finito, não interessa o seu número, o défice orçamental não se altera, sendo sempre igual a uma constante (neste caso, 4%, o que ultrapassa o fatídico limite de 3%).

Parece, portanto, que não há nada a fazer, o défice seria sempre 4%. Cruel engano! Imagine-se que o número de fases é arbitrariamente grande, mesmo infinito. Na Figura 2 multiplicar-se-ia o número de degraus à medida que o número de fases aumenta, mas o défice orçamental seria sempre 4.

Mas agora note-se que quando o número de fases se torna infinito a linha em escada da figura 2 se transforma numa rampa, como na Figura 3.

<Figura 3> Mas qual é agora a distância da origem a d, isto é o comprimento da rampa? A rampa é a hipotenusa de um triângulo rectângulo cujos catetos são iguais a 2.

Então, já lá diria o velho Pitágoras: a rampa terá comprimento igual a . Temos então o Segundo Teorema do Orçamento por Fases: se o número de fases for infinito, o défice orçamental diminui, sendo assim inferior ao que se verifica para qualquer número finito de fases.

No exemplo não só o défice seria menor, como seria inferior a 3%. Por outras palavras, se colocarmos por ordem os sucessivos défices orçamentais para uma fase, duas fases, três fases e assim por aí adiante, o défice orçamental seria sucessivamente: 4, 4, 4, 4, 4, ......, 4, ... 2,8 o que quer dizer que temos uma sucessão constante de termos iguais a quatro cujo limite é 2,8.

Cá está a forma como a Senhora Ministra vai conseguir ter um défice inferior a 3% em 2004, é esta a razão do orçamento em fases. Isto significa não ter metas para o ano, nem para o semestre, nem para o mês. O Ministério das Finanças vai traçar objectivos e controlar o défice orçamental ao segundo, ou ainda abaixo.

É assim que conseguimos ter menos de 3% para o défice orçamental. E se isto vos confunde, caros leitores, ainda mais que a execução orçamental de Dezembro, imaginem a confusão que vai ser no ECOFIN. Fica definitivamente provado, se mais fosse preciso, que ninguém percebe o défice orçamental português.

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