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21 de Outubro de 2005 às 13:59

Memórias de Cutileiro

Gostava de saber o que é um «social-democrata austero», entendendo-se, no contrário, de que há social-democratas amenos ou macios. E também apreciava conhecer a natureza concreta das emocionantes realizações de Cavaco, apontado por gente insuspeita como o

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Trabalhámos, José Cutileiro e eu, numa revista, «Almanaque», que marcou época e fez história. Uma Redacção de luxo: Alexandre O’Neill, Luís de Sttau Monteiro, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Vasco Pulido Valente e outros, adventícios. Os ilustradores: João Abel Manta, Guilherme Casquilho, Luís Filipe de Abreu, Pilo da Silva. Capista: Sebastião Rodrigues. Corria a década de 60, e a solidariedade, estabelecida na cumplicidade antifascista e no decoro moral, não permitia nenhuma espécie de ambiguidade. Muito menos a ambiguidade ética e estética. Não se trata de metáforas do absurdo. Basta folhear a colecção da revista.

A incontinência da criatividade e da imaginação constituiu a escora do «Almanaque». E uma irreverência sem freios, que nos impelia a dribles inesgotáveis para escapar às teias da Censura. Mas era uma aventura fugaz, pela grandeza do objectivo. Durou o tempo que durou graças a um editor fora-de-série. Falo de Joaquim Figueiredo de Magalhães, que nunca recebeu prebendas de nenhum poder fáctico, e que, com 90 anos, vive no coração caloroso dos indefectíveis. A história desse grupo está por fazer. Escrevê-la-ei.

Toco hoje no batente da memória para, de leve embora, falar de José Cutileiro, suscitado por uma artigo que fez publicar no «Expresso», e que me deixou pouco menos do que atónito. Diz ele: «Neste momento delicado da vida portuguesa, de entre os candidatos e presumíveis candidatos à Presidência da República, o único que me parece talhado para exercer o cargo é o professor Aníbal Cavaco Silva. Social-democrata austero, governou melhor o país do que qualquer dos outros primeiros-ministros da Segunda República, como muita gente se lembra e índices estatísticos mostram. Tinha nessa altura - e tem ainda - uma vontade obstinada e sincera de ver Portugal no trilho que lhe pertence de nação desenvolvida e honesta da Europa - e sabe, para tal, o que se deve e o que não se deve fazer. Presidente da República, daria um contributo importante ao esforço comum e ajudar-nos-ia a sair do buraco onde nos metemos».

É um texto mal cerzido, pouco convicto e repleto de vulgaridades, surpreendente num intelectual da estirpe de Cutileiro, outrora mordaz destruidor de mitos. Essas virtudes aplicá-las-ia na diplomacia, para onde trepou com o respaldo político socialista. Há uma crónica, no «Almanaque», intitulada «Repensar Portugal», de José Cutileiro, cuja actualidade em estrutura mental, grandeza e desígnio, exprime o oposto do que ele agora defende no «Expresso».

Gostava de saber o que é um «social-democrata austero», entendendo-se, no contrário, de que há social-democratas amenos ou macios. E também apreciava conhecer a natureza concreta das emocionantes realizações de Cavaco, apontado por gente insuspeita como o principal responsável do «buraco em que nos metemos». Como pode o admirável crítico dos provincianismos portugueses tornar-se num inesperado protector do mais monumental embuste da política portuguesa pós-Abril? O artigo é um desconcerto deplorável, e nota-se a dificuldade do preopinante em sustentar a trôpega argumentação.

Cutileiro, entretanto autor, sempre no pesado «Expresso», de levíssimos de sueltos, sob o título de «O Mundo dos Outros», sacado a um belo livro de memórias de José Gomes Ferreira; e de inquietantes necrologias, igualmente no diligente semanário, é uma sombra do buliçoso comentador da realidade nacional.

Só mediocremente me interessa a circunstância de ele ter mudado de carril. Entristece-me, isso sim, que alinhe com a mediocridade mais rasteira do País e participe nesse jogo execrável de torpedear a verdade. José Cutileiro sabe que Cavaco não poderá exorbitar das funções que a Constituição lhe confere, e que é uma transigência moral e intelectual o remate da sua artigalhada: «Haja o bom senso colectivo de o pôr no Palácio de Belém, pois nenhum dos seus rivais na corrida tem unhas [sic] para tocar essa guitarra».

APOSTILA - A incivilidade, a canalhice e a cobardia estão associadas a quem usa o capuz do anonimato para insultar. Escapam, assim, os biltres, às bengaladas do homem de bem. Sempre escrevi com endereço e assinatura por baixo. Conquistei um assanhado rol de inimigos que me divertem, e um número (podem crer que avantajado) de amigos, cujas críticas me alentam. Você é um deles. Até porque me escreve sem mascarilha.

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