Opinião
Memória de um resistente
Li, num jornal, que um "historiador" de risco ao lado escrevera sob a piedosa bondade de Salazar e as malfeitorias inquietantes cometidas durante a Primeira República. Nada de novo. Estas escorrências acontecem periodicamente, e não surtem outro efeito que não...
Li, num jornal, que um "historiador" de risco ao lado escrevera sob a piedosa bondade de Salazar e as malfeitorias inquietantes cometidas durante a Primeira República. Nada de novo. Estas escorrências acontecem periodicamente, e não surtem outro efeito que não o de suscitar um pouco de brotoeja. Como algumas pessoas haviam comentado a desonestidade intelectual, logo saltou um "compagnon de route" do preopinante, um tipo apenas desprezível, a terçar armas pelo parceiro. Não é uma história de canalhice: é, apenas, uma trapalhice, comum a gente daquele jaez e estilo.
Não se trata, neste caso, de um e outro se manifestarem de Direita, nem que aos seus contendores se atribua uma opção de Esquerda. A virtude e a decência não escolhem partidos ou ideologias. Trata-se, unicamente, de projecções de gente mal-formada, de carácter duvidoso e de probidade mais do que suspeita. Já em tempos, José Hermano Saraiva declarara, a uma revista semanal, que "Salazar era um santo e era um génio". Nada disto traz doenças ao mundo. Espelha, porém, a natureza enferma de quem o diz.
Acontece que, para fazer um trabalho sobre Alexandre Cabral [1917-1996], eu tinha entre mãos um livro, "Memórias de um Resistente", daquele meu inesquecível amigo e camarada. A primeira edição é de 1970, num dos mais rudes períodos do fascismo, que estrebuchava, e, exactamente por estrebuchar, tornava-se raivoso e crudelíssimo. Cabral utilizava o processo do documentário ficcionado, e narrava episódios da Resistência, das lutas estudantis, das cenas de pancadaria que envolviam legionários disfarçados e escritores como Manuel da Fonseca, cuja bravura era lendária.
O livro esgotara-se rapidamente. Durante anos, serrazinei o meu amigo para que o reeditasse. Mas Cabral, cuja modéstia e generosidade eram imensas, desejava ocupar-se de uma das suas paixões: Camilo Castelo Branco - e deixava a sua obra (romances, contos e novelas) para segundas núpcias. Até que resolveu relançar o volume. No prefácio faz menção das minhas insistências e da solidariedade que envolvia a geração dele e a minha.
O ambiente salazarista, a inominável pressão sobre a cultura e os homens da liberdade, a batalha contra o fascismo, os crimes praticados por ordem expressa de Salazar - entre os quais o assassínio de Humberto Delgado e a prática persistente da tortura a presos políticos - estão bem reflectidos nesta obra maior de Alexandre Cabral.
Além de ser um camilianista distintíssimo (ou camilino, como queria Tomaz de Figueiredo, outro escritor maior e miseravelmente esquecido), Alexandre Cabral era um espírito superior, tolerante, senhor de uma ironia que, por vezes, atingia as raias do sarcasmo; e corajoso como as armas. Foi, ele também, como milhares e milhares de outros portugueses, vítima da "inexcedível bondade" de Salazar: preso e torturado, nada disse à polícia, nem sequer o seu nome de baptismo: Alexandre Cabral era pseudónimo.
Cabral era um luminoso contador de histórias: as suas memórias eram um desfile de admiráveis acontecimentos, nos quais, por discrição e modéstia, ele se colocava sempre em segundo plano, quando, as mais das vezes, era o principal e fundamental protagonista. A amizade, para este homem de olhar claro e bom, constituía um laço indestrutível. Amigo de Joaquim Soeiro Pereira Gomes (fora o último a vê-lo com vida), de Alves Redol, Sidónio Muralha, Armindo Rodrigues, mas também de Ferreira de Castro, Assis Esperança, Jaime Brasil, ele representava uma espécie de "ponte" entre o PCP e os anarquistas como de outros militantes antifascistas, no entendimento de que só a união entre todas as resistências poderia fazer frente à ditadura.
Viveu no Congo Belga, com o fraterno amigo Sidónio Muralha, e escreveu vários livros cuja temática anticolonial abre um precedente fundamental. E os estudos camilianistas devem-lhe a exumação de documentos esclarecedores sobre a vida e os trabalhos do imenso mestre de Ceide. Escrever, escrever sobre a natureza das coisas e a grandeza dos homens não foi, somente, um fito literário: foi um projecto de vida que Alexandre Cabral converteu num destino.
Um destino de honra, de grandeza e de dignidade.
b.bastos@netcabo.pt
Não se trata, neste caso, de um e outro se manifestarem de Direita, nem que aos seus contendores se atribua uma opção de Esquerda. A virtude e a decência não escolhem partidos ou ideologias. Trata-se, unicamente, de projecções de gente mal-formada, de carácter duvidoso e de probidade mais do que suspeita. Já em tempos, José Hermano Saraiva declarara, a uma revista semanal, que "Salazar era um santo e era um génio". Nada disto traz doenças ao mundo. Espelha, porém, a natureza enferma de quem o diz.
O livro esgotara-se rapidamente. Durante anos, serrazinei o meu amigo para que o reeditasse. Mas Cabral, cuja modéstia e generosidade eram imensas, desejava ocupar-se de uma das suas paixões: Camilo Castelo Branco - e deixava a sua obra (romances, contos e novelas) para segundas núpcias. Até que resolveu relançar o volume. No prefácio faz menção das minhas insistências e da solidariedade que envolvia a geração dele e a minha.
O ambiente salazarista, a inominável pressão sobre a cultura e os homens da liberdade, a batalha contra o fascismo, os crimes praticados por ordem expressa de Salazar - entre os quais o assassínio de Humberto Delgado e a prática persistente da tortura a presos políticos - estão bem reflectidos nesta obra maior de Alexandre Cabral.
Além de ser um camilianista distintíssimo (ou camilino, como queria Tomaz de Figueiredo, outro escritor maior e miseravelmente esquecido), Alexandre Cabral era um espírito superior, tolerante, senhor de uma ironia que, por vezes, atingia as raias do sarcasmo; e corajoso como as armas. Foi, ele também, como milhares e milhares de outros portugueses, vítima da "inexcedível bondade" de Salazar: preso e torturado, nada disse à polícia, nem sequer o seu nome de baptismo: Alexandre Cabral era pseudónimo.
Cabral era um luminoso contador de histórias: as suas memórias eram um desfile de admiráveis acontecimentos, nos quais, por discrição e modéstia, ele se colocava sempre em segundo plano, quando, as mais das vezes, era o principal e fundamental protagonista. A amizade, para este homem de olhar claro e bom, constituía um laço indestrutível. Amigo de Joaquim Soeiro Pereira Gomes (fora o último a vê-lo com vida), de Alves Redol, Sidónio Muralha, Armindo Rodrigues, mas também de Ferreira de Castro, Assis Esperança, Jaime Brasil, ele representava uma espécie de "ponte" entre o PCP e os anarquistas como de outros militantes antifascistas, no entendimento de que só a união entre todas as resistências poderia fazer frente à ditadura.
Viveu no Congo Belga, com o fraterno amigo Sidónio Muralha, e escreveu vários livros cuja temática anticolonial abre um precedente fundamental. E os estudos camilianistas devem-lhe a exumação de documentos esclarecedores sobre a vida e os trabalhos do imenso mestre de Ceide. Escrever, escrever sobre a natureza das coisas e a grandeza dos homens não foi, somente, um fito literário: foi um projecto de vida que Alexandre Cabral converteu num destino.
Um destino de honra, de grandeza e de dignidade.
b.bastos@netcabo.pt
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