Opinião
Liberalização das Farmácias: Sim ou Não?
Assistir ao recente debate parlamentar sobre o novo regime jurídico das farmácias de oficina, onde se prevê, entre outras medidas, a liberalização da propriedade de farmácias causou-me particular impressão, tendo ficado com a profunda sensação de que em n
Contudo, permitiu aos mais interessados e atentos contrastar as posições e práticas legislativas sobre uma matéria que tanto tem apaixonado o espaço mediático no nosso país. De forma clara, assumiu-se univocamente a vontade de não auscultar regimentalmente os parceiros do sector.
Como bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, tenho procurado esclarecer os motivos que suportam o modelo vigente no nosso país e, apesar das críticas (i)mediáticas, a argumentação que os farmacêuticos têm defendido está assente em estudos e pareceres com fundamentação técnica e científica. Temos publicado relatórios, estudos e pareceres elaborados por académicos independentes com competência publicamente reconhecida, cujas conclusões nunca foram rebatidas.
Assim se coloca a primeira e legítima questão: em que estudos se baseiam as propostas actualmente em discussão? Responder-me-ão os defensores: com o relatório da Autoridade da Concorrência (AdC)? Mas esse não conta. Como ela própria já assumiu publicamente, os estudos das recomendações para o sector têm erros e revelam amadorismo e falta de rigor na sua realização. Aliás, oito das recomendações propostas por esta entidade foram rejeitadas, cinco mitigadas e modificadas e apenas uma (a liberalização da propriedade) se está a discutir.
Justifica-se então que a actual regulamentação é oriunda do bafiento "corporativismo" do Estado Novo, mais concretamente dos anos de 1965 e 1968 e, como tal, desajustada com a democracia e Estado de direito actuais.
E assim se coloca a segunda questão legítima: como era antes? Ninguém parece querer esclarecer que a matéria da propriedade de farmácia reservada a farmacêuticos foi uma batalha política da 1ª República para pôr cobro ao caos e riscos de saúde que vigoravam com a "propriedade livre" anterior, através de medidas legislativas em 1924, 1927, 1929 e 1933, que evoluíram até às medidas da década de 1960, e que obrigavam à participação de farmacêuticos na propriedade de farmácias.
Envolvidos numa modernidade sem precedentes, o argumentário justificativo passa a centrar-se na evolução e tendência europeia. A terceira e óbvia pergunta é: qual tendência? A Comissão Europeia viu rejeitado pelo Parlamento e Conselho Europeu a inclusão da saúde na liberalização dos serviços da "Directiva Bolkestein". O Tratado Europeu é explícito que cabe aos Estados-membros a definição das suas políticas de saúde, sendo meramente subsidiária a acção comunitária. Em suma, a organização do sistema de saúde é uma matéria estritamente nacional e para a qual não concorrem os palpites liberalizadores da Comissão Europeia. Recentemente, os governos italiano, austríaco e espanhol, a que se somam todos os candidatos presidenciais em França, foram peremptórios na defesa exaustiva do modelo de farmácia reservada a farmacêuticos, com a justificação de (pasme-se!) defesa do interesse público, planificação de recursos de saúde e satisfação das populações. A este nível estão por provar as diferenças de "interesse" público que colocam Portugal num caminho diametralmente oposto. Serão os cidadãos portugueses mais ou menos considerados no seu direito à saúde do que os destes países? Estaremos a falar de países subdesenvolvidos que não dispõem das modernas concepções de modelo de farmácia?
Continuando o raciocínio liberal, chega a presumir-se que o modelo nacional é uma singularidade nacional e europeia em relação à reserva de propriedade para profissionais habilitados. A quarta pergunta será: porque são os farmacêuticos portugueses aparentemente privilegiados? Não o são? A nível nacional outras actividades estão sujeitas à mesma reserva de propriedade (advogados e notários, por exemplo) e ao nível europeu é tão singular como maioritário, em 17 dos 25 países da UE as farmácias são obrigatoriamente propriedade de farmacêuticos.
Resta, por fim, a legítima questão não respondida pelos arautos da liberalização económica: o que muda com a liberalização da propriedade de farmácia? De acordo com estudos de outros países, as alterações repercutem-se de várias formas: assimetria de acesso a medicamentos; concentração e verticalização económica; perda de poder regulador do Estado; degradação da qualificação profissional nas farmácias; decréscimo da qualidade de serviço; e, não menos relevante, incapacidade de contenção de custos com os medicamentos. Ou seja, a escolha confronta-se entre um modelo regulado, conhecido e testado versus um modelo liberal, cujos países experimentadores têm agora maiores dificuldades de impor regulação e contenção económica.
São estas questões e respectivas respostas que lanço para um contraditório, com a única ressalva de ser exigível uma confrontação séria e com fundamentação.
Aos decisores políticos do nosso país fica também o repto de responderem, de forma conclusiva, a uma última questão: os cidadãos que os elegem têm o direito de saber o que lhes estão a "vender".
Como nota final, o oráculo: a vingar a liberalização nestes moldes, desenganem-se aqueles que julgam que vão entrar num "negócio" altamente lucrativo. As farmácias não serão para os pequenos e médios investidores, que julgam entrar num oportuno retorno de investimento. Como noutros países a experiência demonstra que o verdadeiro "NEGÓCIO" será para três ou quatro grupos de grande dimensão, possivelmente multinacionais, que pacientemente acumularão farmácias, provavelmente a um ritmo de múltiplos de quatro como parece sugerir a proposta em discussão.