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Justiça, a quanto obrigas?

A propósito da pirataria informática, está em voga a defesa da perigosa tese de justificar práticas ilícitas, legitimando-as, porque conduzirão a denunciar crimes.

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A notícia de um crime para o Ministério Público ou para os órgãos de polícia criminal pode ocorrer por conhecimento próprio ou mediante denúncia e a denúncia pode ser feita por qualquer pessoa ou pelo ofendido com a prática do crime. No entanto, quando a denúncia é anónima só se determina a abertura de inquérito se a mesma i) constituir crime ou ii) dela se retirarem indícios da prática de crime.

O problema é que muitas vezes as denúncias anónimas são verdadeiras peças de novela - tudo dizem e nada dizem. Deparamos com verdadeiras personagens mistério que conduzem à abertura de um processo e a uma investigação que envereda por fáceis e tortuosas imputações.

E depois, como individualizar em relação ao(s) denunciado(s) os elementos concretos da imputação que foi genérica e titubeantemente feita?

Na prática, por vezes, situações da mais leve suspeita transmutam-se em considerar forte a (probabilidade de) participação do(s) agente(s) no ilícito - refiram-se os casos de supostas co-autorias - o que acarreta que o processo, na fase investigatória, seja logo um instrumento de punição: o que seria a consequência ou o coroar de todo um 'íter' processual (no caso de se concluir pela culpa do sujeito) transforma-se, 'ab initio', num instrumento punitivo e castigador.

O processo penal deve ser a construção histórica dos factos, a procura da verdade material dentro de determinado âmbito e objeto e não o resultado de uma denúncia que busque uma verdade construída a qualquer preço: não podemos legitimar o abuso do "livre convencimento" para acusar e, ex ante, até para perseguir. Há pressupostos, desde logo a dúvida razoável e o princípio do 'in dúbio pro reo', que - mesmo na fase preliminar do processo penal, arriscamos - têm que ser observados.

Por outro lado, as provas da existência de um suposto crime não podem ser obtidas a qualquer preço ou por qualquer meio. Já o sabemos, é um princípio insofismável do nosso processo penal e resulta, ao nível do direito infraconstitucional, desde logo da conjugação do disposto nos artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal. A propósito da pirataria informática, está em voga a defesa da perigosa tese de justificar práticas ilícitas, legitimando-as, porque conduzirão a denunciar crimes e agentes cuja existência se desconheceria se não fossem as santas 'mãozinhas trabalhadeiras'. Tudo em função de interesses, ditos, superiores: a final, a sociedade só terá a lucrar pois, com estas práticas, defendemo-la contra o desconhecido mundo do crime.

Estamos nos antípodas! A obtenção e o acesso ilícito a provas (e por isso não é de 'whistleblowers' com o recorte que a diretiva da UE prevê de que estamos a falar) têm sempre subjacente a prática de um crime… e quem defende meios de obtenção de prova clandestinos defende uma investigação que se desenvolve com "métodos ocultos" e defende, além do mais, um grau de afetação dos direitos fundamentais em ordem ao êxito probatório que não é compaginável com a ordem de valores constitucional.

É que, na equação da compensação do mal pelo mal menor (?) não há um mal menor: convém não esquecer os princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade e também que "são…nulas, não podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular".

Vamos precisar de ser alvo de escutas telefónicas, buscas, apreensões, revistas, exames…, feitas pelas mãos de "justiceiros" para perceber as diferenças entre uma justiça medieval e a justiça que queremos que nos proteja quando somos nós os visados? É que quando assim é, normalmente, temos para nós que os fins já não justificam os meios. 


Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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