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Escutas telefónicas

Recentemente ficámos a saber pela boca do Procurador-geral da República que afinal «só» estão sobre escuta telefónica cerca de oito mil cidadãos no nosso país. A revelação, que na origem teria a intenção de desvalorizar o assunto, é estonteante.

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Definitivamente Souto Moura cada vez que abre a boca semeia os ventos e colhe as tempestades, tudo por junto e de uma só vez.

O assunto das escutas não é, em nenhuma parte do mundo, matéria susceptível de tanta ligeireza. Ainda para mais quando se fala de números tão vastos que só podem significar uma alucinada generalização da prática. Basta um pouco de matemática para se perceber do que estamos a falar.

Oito mil escutados, julgo que 24 horas por dia, caso não se trate de mais uma guerra do Solnado com descanso para almoço e fins-de-semana prolongados, são muitas horas de conversa. Considerando uma média de vinte chamadas, feitas e recebidas, por dia por cada suspeito, basta fazer as contas para dar cento e sessenta mil conversações quotidianas para ouvir, decifrar, reproduzir, anotar e juntar aos respectivos processos. Continuando os cálculos e se pensarmos num diálogo médio de um só minuto, são duas mil seiscentas e sessenta horas de tagarelice registada. O que significa trezentos e trinta polícias a ouvir ininterruptamente oito horas por dia todos estes registos.

São números impressionantes. E continuam a sê-lo mesmo que se baixem os valores referidos. Mas há mais e bem mais significativo. Se essas oito mil pessoas suspeitas falarem com cerca de cinquenta outras durante um certo período de tempo, o total da população escutada directa e indirectamente é da ordem dos quatrocentos mil indivíduos. Descontando as crianças, idosos, camponeses, muito pobres e tanta gente que não tem telefone ou telemóvel esse número significa cerca de 10% da população. Não admira pois que desde o Presidente da República a qualquer frequentador do bar Snob se torne matéria de audição policial.

Por muito imprecisos que sejam estes cálculos algumas conclusões podem ser retiradas. Destaco três.

Primeiro. Não existem no país nem meios humanos nem condições tecnológicas, para se realizar um tal serviço com seriedade e eficácia. Por isso é de crer que neste domínio, tão crítico, reine a mais perversa das arbitrariedades. Tudo indica que o acaso, a mais absoluta discricionariedade, a pressão mediática e muita idiossincrasia predominem na decisão de quem é realmente escutado.

Segundo. Um país onde os serviços judiciais e policiais procedem a uma escuta permanente de cerca de dez por cento da população ou é uma ditadura, um estado policial ou simplesmente uma república das bananas. Não é certamente um estado democrático e de direito.

Terceiro. Uma magistratura e um corpo policial que não conseguem investigar e aplicar a justiça sem recorrer massivamente a escutas telefónicas demonstram pouca competência e debilitam, dessa maneira, a própria confiança dos cidadãos no sistema.

Poderia ainda destacar uma outra questão adicional. Quando o Procurador afirma nos jornais que oito mil pessoas são escutadas e com elas uma parte muito significativa da população, está a contribuir para criar um forte clima de insegurança. Estamos perante a construção deliberada de um clima de terror que já hoje se exprime nas recorrentes piadas ao telefone sobre o assunto, mas mais seriamente, no medo que efectivamente se tem de dizer algo que possa de alguma maneira ser entendido como comprometedor. O que faz lembrar o tempo em que não se falava nos cafés pois na mesa ao lado podia sempre estar algum legionário, bufo ou PIDE.

O tipo de abuso que uma tão generalizada prática de escutas telefónicas configura não é aceitável numa democracia europeia. Mais do que a mera indignação a classe política tem a responsabilidade de alterar, rápida e profundamente, um comportamento claramente desviante da justiça e das forças policiais. Não se trata de legislar sobre o acontecimento, já que o assunto é recorrente desde há muitos anos. Trata-se simplesmente de cumprir e fazer cumprir o estado de direito.

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