Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

Esboço do português médio

O chinfrim em torno do futebol e seus escândalos tem anestesiado a mente, já de si avariada, do português médio. O português médio é aquele que ouvimos nas televisões dizer, em directo, coisas absurdas, num idioma cada vez mais primário. Sabe os nomes de todos os futebolistas, de todos os treinadores, das transferências escabrosas, das classificações de todos os clubes do mundo.

  • ...
Sabe pouco de si próprio, o português médio. O português médio deixou de ser povo; transformou-se em população. Assim como o conceito de comunidade se converteu na noção de sociedade, mais consentânea com a ligeireza dos tempos e a futilidade de quem estatui estas coisas.

Não é, somente, um problema de se conhecer o idioma: sim uma espécie de oligofrenia que, devastadora, está a fazer do português médio um ser abúlico. De vez em vez, quando lhe tocam no ordenado ou ameaçam tripudiar sobre os seus direitos mais elementares, o português médio rebela-se. É sol de pouca dura, porque os seus protestos não possuem substância "política", são meras irritações "sociais." O português médio está "portugalizado"; quer-se dizer: faz que anda mas não anda. Perdeu alguma coisa daquela energia vital que, em tempos, fez de um território uma nação e de uma nação um testemunho moral e uma evidência medular.

Subserviente, o português médio perdeu, no camaleonismo, a grandeza que o fazia inventar, e a ousadia que era outra forma de identificação própria. Não lê, não estuda, não reflecte, não actua em função do conhecimento das coisas e da vida, sim impulsionado por emoções extremamente frágeis. O videirismo é a filosofia do momento. A ausência de carácter, uma permanência avassaladora. E estas ruínas morais são apadrinhadas pelos poderes fácticos, entre os quais os da Imprensa, das rádios e das televisões. É perigoso generalizar (eu sei); porém, ignorar a extensão da desvergonha configura uma abjecta cumplicidade.

Repare-se no número obsceno de programas televisivos sobre futebol. Parece que a pátria está pendente do que dizem preopinantes pouco apetrechados culturalmente e apenas propensos à banalidade. Há intelectuais, como António-Pedro de Vasconcelos, pelo qual tenho apreço, que se deixaram envolver na teia, e nem sequer se distanciam, criticamente, desse universalismo abstracto que é o futebol, assim interpretado.

A amnésia histórica, base de todas as ditaduras (mesmo as ditaduras democráticas, contidas nas maiorias absolutas), expande-se como chaga ou endemia. Ontem, patrocinada pela Fundação José Saramago, houve, no São Carlos, uma sessão sobre Jorge de Sena. O esquecimento que pesa sobre este homem e a obra grandiosa que realizou chega a ser escabroso. Mas Sena não é caso único. A lista dos ignorados pelos ignorantes é imensa. E o século XX português, marcado pelo fascismo, nunca deixou de ser um fenómeno surpreendente de resistência cultural. Aquilino vai, agora, ao que julgo saber, ser reavivado pela Bertrand, que se prepara para reeditar o seu autor mais importante. O português médio, que consome três diários "desportivos", desconhece Raul Brandão, Nemésio, Tomaz de Figueiredo, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Redol, Namora, David Mourão-Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Branquinho da Fonseca, José Régio, Torga, António José Saraiva, Luís de Albuquerque, Augusto Abelaira. A Dom Quixote chegou a publicar três ou quatro volumes dos famosos "Diários", de José Gomes Ferreira, agenda monumental dos dias cinzentos do salazarismo. Lá se consignam os encontros nas tertúlias literárias, as conspirações políticas, as grandezas e as misérias de muitos nomes canónicos, os retratos de funâmbulos e de troca-tintas: um panorama, frequentemente admirável, de uma época que a todos marcou e ainda marca. Pois bem: a editora teve de suspender a continuação editorial daquela importantíssima obra por ausência de leitores.

O caso de Jorge de Sena é exemplar pelo que comporta de negativo. Ele foi um dos quatro maiores poetas do século XX e um dos grandes de sempre. Várias editoras empreenderam a tarefa de o divulgar, com o apoio, sempre incansável e entusiástico, de Mécia de Sena, sua viúva, e ela também, uma escritora de invulgar qualidade. Em vão. Os apoios escassos estavam a par da escassa promoção. E Sena não é, apenas, fundamental: é indispensável.
De vez em quando, um desses políticos que por aí andam, certamente avisado por assessores menos tontos e um pouco mais lidos, cita este poeta, aquele romancista, estoutro ensaísta. É a cereja dependurada na orelha: não serve para nada, nem sequer para enfeitar. Torga, O’Neill, Eugénio foram nomeados em discursos pouco sólidos. Também lhes oferecem, se não postumamente, nos finais das suas vidas, alguns penduricalhos. E assim aliviam a péssima ideia que os outros deles fazem, convocando alguns daqueles que por eles nutriam o mais feroz dos desprezos.

O português médio corresponde a um retrato sociológico, aliás, já amplamente analisado em Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Fialho d’Almeida, entre outros grandes escritores portugueses do século XIX. A mentalidade retrógrada, assustadiça, padreca pouco se alterou. "Estamos iguais porque somos preguiçosos e indolentes", escreveu António José Saraiva, cujo livro, "A Tertúlia Ocidental", deveria ser leitura obrigatória da "classe" política.

O português médio, exactamente por sê-lo e por não estar disposto a modificar-se, criou este embaraço em que nos obrigou a viver.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio