Opinião
Dar corpo ao manifesto
Os ignorantes e os irresponsáveis é que pensam que mais vale ficar de braços cruzados. Mas também só um ingénuo acredita que, sem proteccionismo ou com regras iguais para todos, é possível discutir os centros de decisão nacionais
Diz-se que quando dois timorenses entram numa sala para definir uma estratégia nacional saem de lá com três partidos políticos: o partido de um, o partido de outro e o partido da convergência.
Se forem dois patrões portugueses, o encontro acaba com a criação de uma associação sectorial, de outra regional, de duas associações nacionais e de uma confederação.
Ao fim de um tempo, para articular tudo isto, define-se uma estrutura de cúpula que congregue todas as outras. E o projecto fracassa.
Esta caricatura, como a história se tem encarregue de mostrar, em nada distorce a realidade. A nossa classe empresarial sempre se organizou em facções. O que quer dizer que foi incapaz de efectivamente se organizar. Logo, de produzir visões globais sobre os destinos do país, de agir em função do interesse nacional.
Percebe-se porquê. Porque os empresários nacionais nunca evitaram a fragmentação das suas próprias relações institucionais, porque os seus representantes envelheceram e porque todas as tentativas de união acabaram perdidas no interminável labirinto associativo. E, no meio de um labirinto, só o super-homem consegue ter vistas largas.
Por isso só agora, tão tarde, demasiado tarde, a nossa elite empresarial tenha despertado para a dimensão nacional do problema, que o país existe além da benesse de curto prazo e que vale a pena reflectir sobre as razões estruturais do nosso atraso.
É evidente que, se a conjuntura não fosse hoje tão adversa, todos continuariam alegremente a assobiar para o lado. E também é óbvio que este manifesto promovido por quatro dezenas de notáveis emerge de uma profunda preocupação sobre o nosso futuro imediato. Preocupação essa que atravessa toda a sociedade e, portanto, não é exclusiva da elite económica.
Os ignorantes e os irresponsáveis é que pensam que mais vale ficar de braços cruzados. Mas também só um ingénuo acredita que, sem proteccionismo ou com regras iguais para todos, é possível discutir os centros de decisão nacionais.
Principalmente, quando já passaram dezassete anos de integração europeia, quase quatro de união monetária e quando foram dados passos irreversíveis na privatização de praticamente todos os sectores ditos estratégicos - em que a banca e as telecomunicações são apenas dois exemplos.
O pecado original do manifesto dos 40 não está, portanto, no diagnóstico que lá é feito. Está na contradição entre os fins propostos e os meios que se subentendem. Está na pergunta essencial que o documento recusa esclarecer - o que os seus subscritores esperam concretamente do Estado?
Daí ser impossível compatibilizar o compromisso do «não ao proteccionismo» com a exigência feita «especialmente ao Governo português» da salvaguarda do controlo nacional dos centros económicos.
Daí não se perceber como a barragem aos estrangeiros «não pode ser conseguida à margem do mercado». E daí acusar-se um Governo de «irresponsabilidade política» se «as regras do jogo sejam estritamente económicas» enquanto, ao mesmo tempo, se declara solenemente que a estratégia nacional não pode ser erguida «à custa do sacrifício da eficiência económica».
Então em que ficamos? No documento ‘politicamente correcto’, que qualquer cidadão pacato não hesitará em subscrever? Na proclamação de princípios gerais, que merecem a concordância de quem mantém uma linha de coerência em defesa dos centros de decisão nacional (como Ernâni Lopes) e também o apoio do mais convicto apologista das liberdades da globalização (como é o caso de António Borges)?
Ou no manifesto daqueles que, manifestamente, querem ganhar vantagens imediatas, partir com alguns metros de avanço na corrida às próximas empresas que o Estado vai alienar?
Obviamente que o «contributo para um conceito estratégico nacional» está elaborado de tal forma que, sem dificuldade de qualquer espécie, de tudo um pouco caberá no grupo que o promove: os oportunistas de sempre e os voluntariosos do costume, os novos ingénuos e os velhos do Restelo.
Pode dizer-se que, sobre as grandes questões, o país necessita de grandes consensos. O que não quer dizer o mesmo que extravagantes abrangências de ideologias e de sensibilidades. Isso só é plausível num manifesto. Impossível quando se quer dar corpo a ele.
Estalou o vernizO código genético de um banqueiro combina uma série de características, que vai da paciência à circunspecção, da discrição à prudência, da cautela à moderação. A delicadeza do negócio que dirigem coloca os homens da alta finança sob o espesso manto do silêncio, unidos por um não declarado pacto de não agressão mútua.
Ao longo da última semana, esse pacto sagrado foi quebrado no sistema financeiro português - o que, por si só, já constitui um facto absolutamente inédito. Tratando-se das personalidades em causa, é caso para ficarmos boquiabertos.
Fugindo às questões óbvias - de o conflito aberto entre Jardim Gonçalves e António de Sousa não ser nada saudável, de este conflito envolver metade da banca nacional - a guerra declarada entre BCP e Caixa Geral de Depósitos obriga a reflectir sobre as suas origens e a retirar lições para o futuro.
A origem é o «caso Champalimaud» e do casamento forçado, da ligação contra-natura, que o Governo de então obrigou a CGD a consumar com um dos seus principais concorrentes: o banco público mantém-se, até hoje, como principal accionista do maior banco privado.
Também é sintoma do nervosismo que anda por aí instalado, reflexo do clima de tensão que se abateu sobre o sector, porque não é normal uma administração insinuar que foi «traída» pelo seu maior accionista, nem é habitual que este reaja na praça pública com acusações sérias – não acesso prévio a informação relevante – ou insultos inusitados.
A lição que fica para o futuro é simples e pode ser resumida num mandamento para o poder político: não interfiras nas gestões profissionais e nas opções estratégicas das tuas empresas, porque a prazo podes arrepender-te e colher frutos contraproducentes.
Mesmo em nome dos centros de decisão nacionais.
Por Sérgio Figueiredo, Director do Jornal de Negócios