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A palavra fã vem do inglês "fan" que é uma abreviatura de fanático. Aplica-se com propriedade aos adeptos mais devotos de religiões, mas também, na cultura de massas, aos seguidores de artistas populares ou, mais ainda, de um certo clube de futebol.

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O uso de fanatismo para esta devoção é adequado porque a relação entre o adepto e o objecto que ele adora ultrapassa toda a lógica e se aloja na emoção e na relação do indivíduo com os colectivos em que se entrega, como a família, a localidade, a classe ou a nação. Uma pessoa é do Benfica porque o pai também era, porque os seus amigos também são, porque é o clube com mais adeptos. Uma jovem adora Shakira ou os Morangos sem Açúcar porque as pessoas da sua idade e da sua escola e grupo adoram também.

A palavra fã é agora central na nova e ampla campanha publicitária da Caixa Geral de Depósitos. A intenção de mudar a imagem da Caixa para a de um banco "normal", privado, moderno, com uma relação afectiva com o cliente centra-se na definição do cliente com um "fã" da Caixa. Uma das frases publicitárias diz: "Usamos o coração sem limites"; e outra frase continua a construção do fã dizendo "Seja um dos nossos."

A campanha arrancou com a imagem de Luiz Felipe Scolari, o treinador da Selecção Nacional de Futebol. Antes de sabermos que ele se tinha transferido do Banco Português de Negócios para a Caixa, já a TV nos impunha a sua presença forte, em plano médio, falando directamente para a câmara. "Felipão" declara-se um fã, o primeiro de uma linhagem de clientes, os desconhecidos que encheram depois os anúncios.

Uma vez mais, a publicidade recorre à linguagem, aos amuletos e aos heróis do futebol: o fã, o cachecol, o treinador. É doentia – fanática – esta presença do futebol no quotidiano, entretanto naturalizada, não só nas notícias desportivas, mas também nas outras notícias, que recorrem ao seu vocabulário, e ainda noutras actividades dele afastadas, como a publicidade. Não há volta a dar: o futebol tornou-se a realidade – real e simbólica – mais forte da nossa vida colectiva. O fanatismo que se esconde na abreviatura fã é hoje um estado de loucura normal do nosso quotidiano. Quem não adere é que passa por louco. Sendo assim, não se estranha que a publicidade siga a banda: centrar uma campanha na bola é meio caminho andado para a sua notoriedade. Tudo bem. Mas há bela sem senão.

Se uma pessoa é fã/fanática de um clube, a sua essência é manter-se adepta do seu objecto de devoção o que quer que seja que acontece. São raríssimos os casos de alguém que muda do Benfica para o Sporting ou vice-versa precisamente porque a devoção é auto-suficiente e não se anula com falcatruas, maus dirigentes, anos consecutivos de derrotas, etc.

A campanha da Caixa conta com o apagamento de uma memória curta acerca do papel que Scolari representou antes no BPN, em resultado da presença avassaladora de Scolari-fã-da-CGD nos media. Mas a mudança inesperada do seleccionador de cara do BPN para cara da CGD é incompreensível precisamente no âmago da campanha da Caixa: o fanatismo, a ligação ao banco. Se um "fã" não muda nunca, como pôde mudar "Felipão" do discurso de fanatismo por um banco para o discurso de fanatismo de um banco concorrente? Soa a demasiado falso.

Quando se trata de "reality TV" ou "reality pub", como neste caso, a publicidade não é ficção pura, em que os actores mudam de personagem. Scolari representa o seu próprio papel de treinador da Selecção Nacional de Futebol, pelo que deveria ter havido algum pudor na assunção da imagem do fã que muda de clube, ou de banco, como quem muda de camisa – ou de cachecol.

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