Opinião
29 de Junho de 2016 às 10:59
Brexit: divergente, insurgente, convergente
Não há como negá-lo. O dia 24 de Junho de 2016 foi um dia triste para a Europa. Numa união, o dia em que alguém decide que vai sair de casa, é sempre um dia difícil.
O fim de qualquer relação dá lugar a incertezas, medos e angústias, motivados, desde logo, pelo receio da mudança e do desconhecido.
Sem desvalorizar os danos causados pelas incertezas, o impacto nos mercados, as preocupações legítimas de quem vê as suas vidas afectadas pelo Brexit, este não tem de representar o fim da Europa, ou sequer o fim da relação do Reino Unido (ou do que dele restar) com a União Europeia.
É essencial pensar o passado dia 24 no contexto de uma Europa que não se fez, e não se faz, de um golpe só, mas se descobre e se renova em cada momento. A comunhão de interesses e a partilha de princípios e valores que ligam os Estados europeus não apagam a diversidade fundamental de histórias, culturas e tradições, e o reconhecimento das diversas e profundas barreiras que dividem a Europa (todas elas mencionadas no preâmbulo dos Tratados). É por isso que a Europa é desde o início um "processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa". Mais do que um fim ou um resultado - "one Union, under God, indivisible" - ela é essencialmente projecto, processo e caminho. E, por isso, feita de avanços e recuos, encerrando irremediavelmente, na senda da famosa trilogia, divergências, insurgências e convergências.
Lembre-se ainda que a integração diferenciada faz parte do ADN europeu. Certo que nem sempre a opacidade do processo de construção europeia deixa entrever a geometria variável que subjaz à União, mas ela é uma realidade incontornável. É essa, desde logo, a lógica dos "opt-outs", das cooperações reforçadas e das integrações progressivas. Coexistem, assim, diversos "clubes" mais pequenos dentro do grémio maior que é a União Europeia. É assim que, todos juntos somos - ainda - 28 Estados-membros, mas apenas 19 integram a Zona Euro e apenas 22 fazem parte do espaço Schengen, para nomear os exemplos mais emblemáticos. Mas há outros, menos conhecidos. Só 25 Estados-membros aprovaram o regime da patente europeia, e apenas 16 Estados-membros adoptaram o regime europeu sobre a lei aplicável ao divórcio. Complexas negociações políticas e diplomáticas, e diversos mecanismos previstos nos Tratados permitem esta integração dita "à la carte", ou como era mais comum designar-se noutros tempos, a existência de uma Europa "a v
árias velocidades". Esta forma de integração é sem dúvida peculiar, e não está isenta de dificuldades, mas não é contraditória com a alma do projecto inicial.
Curiosamente (ou não), o Reino Unido - cuja adesão às então Comunidades Europeias esteve longe de ser evidente - está praticamente fora de todos estas "associações" parciais. Fora da Zona Euro, de Schengen, do divórcio. Negociou ainda, como é sabido, um conjunto significativo de "opt-outs" que lhe permitiram ao longo dos anos distanciar-se do desenvolvimento de um conjunto importante de políticas europeias. Fez uma importante declaração relativamente à Carta dos Direitos Fundamentais da União (em particular, no que diz respeito aos direitos sociais) e não participa em muitos regimes associados ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Em abono da verdade, deve dizer-se que não está sozinho. A Irlanda, a Dinamarca e a Polónia, por exemplo, também negociaram a seu tempo regimes especiais, afastando-se de algumas políticas centrais da União Europeia.
Em todo o caso, já George Steiner chamava a atenção, na sua famosa "Ideia de Europa", para as diferenças fundamentais que separam o Reino Unido do resto da Europa. Na sua famosa alusão aos cafés da Europa - cujo mapa constituiria um dos marcadores essenciais da ideia de Europa - notou Steiner que, após um breve período em que estiveram na moda no século XVIII, existem poucos cafés em Inglaterra. Os "pubs" bretões correspondem a uma realidade ontológica diferente, não comparável com os cafés de Pessoa, em Lisboa, os cafés de Odessa, de Copenhaga, ou os balcões de Palermo.
Mas nada disto constitui necessariamente um impedimento a uma "união cada vez mais estreita entre os povos da Europa". É que se alguns dos que estão dentro estão parcialmente fora, outros que estão fora estão também parcialmente dentro. É assim que além dos 28 Estados que integram a União, muitos outros se encontram a ela associadas das mais diversas formas. Três dos países que fazem parte da Associação Europeia de Comércio Livre (mais conhecida como EFTA), a Noruega, a Islândia e o Liechtenstein, estão associados através do acordo que estabelece o Espaço Económico Europeu (EEE), e que estende relativamente a estes países grande partes do regime do mercado interno e das liberdades de circulação. A Suíça, mantendo-se fora do EEE, mantém diversos acordos bilaterais com a União Europeia que estendem o âmbito de aplicação do direito europeu também ao território helvético. E quão frequente é ouvir dizer-se que todos estes Estados fazem parte da União Europeia…
Assim, nesta teia de relações complexas que é hoje a Europa - qual "caleidoscópio sem lógica" -, a saída do Reino Unido poderá envolver um divórcio sem separação. O simbolismo pesa e dói, mas na prática pouco muda.
O dia 24 de Junho de 2016 foi um dia histórico. Representou provavelmente o maior recuo no processo de integração europeia até hoje. Trata-se da primeira saída oficial da União nos termos do agora famoso artigo 50.º do Tratado. A saída da Gronelândia, em 1985, não é certamente precedente comparável. Mas não é o fim da história. Há Europa além do Brexit. Hoje, poucos dias depois, o futuro é ainda incerto e nebuloso. Também o era nos anos cinquenta do século passado quando se lançaram as primeiras pedras do projecto europeu numa Europa devastada e sofrida pelas guerras. A convicção de Jean Monnet, incluída nas suas "Memórias", de que o processo de construção europeia conduziria à criação dos Estados Unidos da Europa parece hoje, talvez mais do que nunca, deslocada. Mas estou em crer que não o são as suas palavras quando afirmava que: "The roots of the Community are strong now, and deep in the soil of Europe. They have survived some hard seasons, and can survive more."
Sem desvalorizar os danos causados pelas incertezas, o impacto nos mercados, as preocupações legítimas de quem vê as suas vidas afectadas pelo Brexit, este não tem de representar o fim da Europa, ou sequer o fim da relação do Reino Unido (ou do que dele restar) com a União Europeia.
Lembre-se ainda que a integração diferenciada faz parte do ADN europeu. Certo que nem sempre a opacidade do processo de construção europeia deixa entrever a geometria variável que subjaz à União, mas ela é uma realidade incontornável. É essa, desde logo, a lógica dos "opt-outs", das cooperações reforçadas e das integrações progressivas. Coexistem, assim, diversos "clubes" mais pequenos dentro do grémio maior que é a União Europeia. É assim que, todos juntos somos - ainda - 28 Estados-membros, mas apenas 19 integram a Zona Euro e apenas 22 fazem parte do espaço Schengen, para nomear os exemplos mais emblemáticos. Mas há outros, menos conhecidos. Só 25 Estados-membros aprovaram o regime da patente europeia, e apenas 16 Estados-membros adoptaram o regime europeu sobre a lei aplicável ao divórcio. Complexas negociações políticas e diplomáticas, e diversos mecanismos previstos nos Tratados permitem esta integração dita "à la carte", ou como era mais comum designar-se noutros tempos, a existência de uma Europa "a v
árias velocidades". Esta forma de integração é sem dúvida peculiar, e não está isenta de dificuldades, mas não é contraditória com a alma do projecto inicial.
Curiosamente (ou não), o Reino Unido - cuja adesão às então Comunidades Europeias esteve longe de ser evidente - está praticamente fora de todos estas "associações" parciais. Fora da Zona Euro, de Schengen, do divórcio. Negociou ainda, como é sabido, um conjunto significativo de "opt-outs" que lhe permitiram ao longo dos anos distanciar-se do desenvolvimento de um conjunto importante de políticas europeias. Fez uma importante declaração relativamente à Carta dos Direitos Fundamentais da União (em particular, no que diz respeito aos direitos sociais) e não participa em muitos regimes associados ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Em abono da verdade, deve dizer-se que não está sozinho. A Irlanda, a Dinamarca e a Polónia, por exemplo, também negociaram a seu tempo regimes especiais, afastando-se de algumas políticas centrais da União Europeia.
Em todo o caso, já George Steiner chamava a atenção, na sua famosa "Ideia de Europa", para as diferenças fundamentais que separam o Reino Unido do resto da Europa. Na sua famosa alusão aos cafés da Europa - cujo mapa constituiria um dos marcadores essenciais da ideia de Europa - notou Steiner que, após um breve período em que estiveram na moda no século XVIII, existem poucos cafés em Inglaterra. Os "pubs" bretões correspondem a uma realidade ontológica diferente, não comparável com os cafés de Pessoa, em Lisboa, os cafés de Odessa, de Copenhaga, ou os balcões de Palermo.
Mas nada disto constitui necessariamente um impedimento a uma "união cada vez mais estreita entre os povos da Europa". É que se alguns dos que estão dentro estão parcialmente fora, outros que estão fora estão também parcialmente dentro. É assim que além dos 28 Estados que integram a União, muitos outros se encontram a ela associadas das mais diversas formas. Três dos países que fazem parte da Associação Europeia de Comércio Livre (mais conhecida como EFTA), a Noruega, a Islândia e o Liechtenstein, estão associados através do acordo que estabelece o Espaço Económico Europeu (EEE), e que estende relativamente a estes países grande partes do regime do mercado interno e das liberdades de circulação. A Suíça, mantendo-se fora do EEE, mantém diversos acordos bilaterais com a União Europeia que estendem o âmbito de aplicação do direito europeu também ao território helvético. E quão frequente é ouvir dizer-se que todos estes Estados fazem parte da União Europeia…
Assim, nesta teia de relações complexas que é hoje a Europa - qual "caleidoscópio sem lógica" -, a saída do Reino Unido poderá envolver um divórcio sem separação. O simbolismo pesa e dói, mas na prática pouco muda.
O dia 24 de Junho de 2016 foi um dia histórico. Representou provavelmente o maior recuo no processo de integração europeia até hoje. Trata-se da primeira saída oficial da União nos termos do agora famoso artigo 50.º do Tratado. A saída da Gronelândia, em 1985, não é certamente precedente comparável. Mas não é o fim da história. Há Europa além do Brexit. Hoje, poucos dias depois, o futuro é ainda incerto e nebuloso. Também o era nos anos cinquenta do século passado quando se lançaram as primeiras pedras do projecto europeu numa Europa devastada e sofrida pelas guerras. A convicção de Jean Monnet, incluída nas suas "Memórias", de que o processo de construção europeia conduziria à criação dos Estados Unidos da Europa parece hoje, talvez mais do que nunca, deslocada. Mas estou em crer que não o são as suas palavras quando afirmava que: "The roots of the Community are strong now, and deep in the soil of Europe. They have survived some hard seasons, and can survive more."
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