Opinião
Baby boomers
Bill Clinton fez sessenta anos e os media americanos resolveram lançar o tema dos baby boomers. Televisões e jornais de várias partes do mundo seguiram o exemplo.
Em consequência viram-se análises interessantes misturadas com alguns disparates, o que é normal e saudável, e assistiu-se também, aqui e ali, à habitual exibição de ódio dos que andam mal consigo e com o mundo.
Por cá são poucos os que conhecem o verdadeiro significado da designação e, exceptuando o meu amigo Henrique Garcia Pereira, ainda menos os que anteriormente a esta súbita excitação mediática deram alguma importância ao assunto. Não admira, a coisa passou-nos um pouco ao lado.
Chama-se baby boomer à geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1946. E isto porque nesses anos, nos Estados Unidos e na Europa democrática, se assistiu a um salto inusitado nas taxas de natalidade. A euforia pelo fim das hostilidades associada à esperança nalguma prosperidade económica, levou muitos casais a se dedicaram com afinco ao exercício do amor. Noutras zonas menos afortunadas do globo, como foi o nosso caso, regimes autoritários e miséria continuaram a reprimir pessoas e libido pelo que esse aumento não se verificou.
Assim, tecnicamente falando, Portugal não teve baby boomers já que a taxa de natalidade não sofreu significativa alteração nas décadas que se seguiram à Guerra. No entanto, considerando que o fenómeno não é só demográfico, mas antes de tudo cultural, é legítimo falar-se entre nós de uma geração de baby boomers por contaminação.
Nos anos 50 Portugal era ainda uma vasta província, sem vida urbana digna desse nome, com um regime beato, anacrónico e muito repressivo. A falta de liberdade e o obscurantismo eram a norma. E a estupidez também. Nunca é demais recordar que este era o país onde a polícia exigia uma licença de isqueiro, esdrúxulo documento que só foi extinto com o 25 de Abril.
Foi o aumento da população estudantil, provocado pelo primeiro grande êxodo para as cidades precisamente na década de 50, que permitiu criar o caldo cultural necessário para o alastramento do vírus libertado pelos baby boomers americanos e europeus. Pequenas ilhas de modernidade começaram então a surgir em particular nalgumas zonas de Lisboa, onde os filhos de uma insípida classe média tinham dinheiro para gastar no Vává e tempo para discutir as novas ideias.
Dos feitos da geração baby boomer destacaria no topo a libertação sexual e em consequência a libertação das mulheres. A pílula contraceptiva, cuja comercialização data do início dos anos 60, foi o motor dessa enorme e imparável revolução. A pílula é aliás a descoberta socialmente mais revolucionária de todo o século XX, já que liberta ou cria condições objectivas para a libertação de metade da humanidade. O acesso à pílula cria então no comportamento dos jovens uma contradição insanável entre o desejo e a norma, o qual esteve na origem de muitas das contestações da época. De recordar que, por exemplo, em Portugal se vivia em regime de apartheid sexual.
Importante também foi o nascimento de uma nova «classe» social, os adolescentes, com a sua cultura própria, os seus anseios e acima de tudo uma enorme urgência de experimentar e viver que o sistema conservador não podia, nem queria, satisfazer. A primeira vaga da cultura adolescente, antes da sua exploração mercantil, é declaradamente subversiva. Para além da vida vivida, que essa já ninguém nos tira, basta ver os filmes de Godard, ouvir o Rock & Roll, ler com atenção livros, poemas e textos para se perceber que assim foi. Mesmo os hippies, na sua ingenuidade política, transportaram uma ideia forte: a felicidade aqui e já em harmonia com a natureza. Do mesmo modo as drogas tinham um carácter experimental e estimulavam a imaginação e a inovação cultural.
Outro contributo relevante dos baby boomers foi considerar que as lutas pela liberdade, individual ou colectiva, não teriam necessariamente que ser vistas como um sacrifício, como era e ainda é habitual nos movimentos ideológicos, mas antes como uma festa. O que se veio a concretizar plenamente nos finais dos anos 60 em várias partes do globo, ainda que tenha assumido a sua forma mais exuberante no Maio de 68. Por cá seria preciso esperar mais uns anos. O 25 de Abril é a grande festa dos baby boomers portugueses. E por isso ao contrário de tantas outras revoluções foi generosa e não derramou sangue.
De lembrar também que foi esta geração que pela primeira vez abordou a questão ambiental, tão determinante. E recordar que se a Internet é o mais vasto espaço de liberdade que existe hoje no mundo, isso deve-se a ter sido criada pela visão anti-autoritária dos baby boomers.
Apesar do evidente sucesso geracional, ou precisamente por isso, hoje, homens tristes e jovens precocemente envelhecidos, culpam os baby boomers de todos os males do mundo. E há sempre aqueles que renegam tudo o que antes diziam ser absolutamente certo. A maior acusação resume-se contudo à questão da autoridade, considerando que os baby boomers abriram em demasia as portas da liberdade. É um argumento que diz muito sobre a visão que esta gente tem da existência humana e da sociedade. Mas que tem alguma razão de ser. De facto, ressalvando talvez a Revolução francesa, os baby boomers aceleraram o passo das liberdades como nunca antes se tinha visto na história. Recombinando o desejo, o conhecimento e a oportunidade esta geração revolucionou o mundo social, político e cultural, mudou comportamentos, alterou relações humanas e sociais e abriu novas perspectivas para indivíduos e comunidades.
Uma grande parte da cultura dos baby boomers tornou-se hegemónica. A liberdade, o culto do prazer, a curiosidade e o respeito pelo outro, a solidariedade social, o experimentalismo, a inovação, a ambição.
Por tudo isto, agora que comemora os seus primeiros 60 anos, esta geração tem razão para estar satisfeita com o contributo que deu para a transformação positiva do mundo. E depois... a história ainda não acabou.