Opinião
As Modernices
A questão não é a da substituição dos livros de papel por livros virtuais, é a coexistência das novas formas com as antigas e isso é bom. Se outro benefício não tivesse trazido, a internet reaproximou de facto as pessoas da escrita e da leitura.
Um dos problemas do jornalismo contemporâneo é a introdução da subjectividade na descrição dos acontecimentos.
Ao interpretarem mais do que relatarem, há jornalistas que se afastam da realidade e moldam o que aconteceu ao que sentem pessoalmente. Vem isto a propósito da intervenção do ensaísta Eduardo Lourenço nas Correntes d’Escrita, que decorreram nos últimos dias na Póvoa do Varzim.
Quinta-feira passada ouvi na TSF um relato da intervenção de Eduardo Lourenço centrado na rejeição, pelo ensaísta, das novas formas de edição electrónica.
“Prefiro sentir o pó entre as páginas amarelecidas” – ouvia-se numa citação. Ao ler o “Público” de sexta-feira, sobre a mesma intervenção, quase não existem referências à dicotomia livro impresso-livro virtual e o que se sentia era a prevalência da importância da leitura e do leitor.
Ora, as mensagens são bem diferentes. Quinta-feira de manhã fiquei com a sensação que Eduardo Lourenço sublinhava como decisiva a forma do suporte em que os livros surgiam e assumia uma atitude conservadora em relação às inovações nessa matéria, rejeitando aliás os caminhos para onde, na sua opinião, os meandros tecnológicos do século XXI estariam a levar a utilização da literatura.
Decidi, então, fazer esta crónica sobre este assunto e aguardar pelos relatos escritos da intervenção do ensaísta para falar com mais certezas. Eis que abro o “Público” e encontro isto: “ Segundo Lourenço, dentro de pouco tempo, no canto mais recôndito do planeta ou na Biblioteca, imaginária ou não, de Alexandria, “transportaremos, viajaremos no ‘interior’, sem folhas, da internética - ‘reduzida a uma floresta unidimensional’ – em todas as bibliotecas do planeta floresta da ‘literatura como mundo’”.
Nesse lance, há algo, porém, que permanece: o leitor e a leitura. ”Entre o relato de rádio que ouvi no carro e o que vi escrito no jornal vai uma grande diferença. Se Eduardo Lourenço se pronunciou contra o progresso na forma de edição (que suspeito ter sido o que aconteceu, tendo por base um comentário adicional de José Carlos Vasconcelos, na mesma conferência, também citado na rádio), porque razão não se reflecte isso na reportagem de jornal?
Será que a posição de Lourenço pareceu demasiado conservadora e saudosista ao repórter do “Público” e ele resolveu atenuar a rejeição do ensaísta ao progresso tecnológico para preservar a sua imagem perante os leitores do jornal?
O progresso tecnológico marca a forma como consumimos a criação artística e intelectual: Gutemberg tornou acessível a muitos o que até então ficava entre muito poucos: os livros. Nos últimos 20 anos alterouse radicalmente a forma como se pode ouvir música, ver filmes e, claro, ler livros ou revistas ou jornais.
Na verdade, o sentido tem sido sempre o de proporcionar um acesso mais fácil, mais universal. É forçoso que os hábitos se alterem, é compreensível que quem começou a ver filmes numa grande sala de cinema não goste de os ver nas pequenas salas de hoje em dia e considere que vê-los em casa (mesmo em excelentes condições técnicas e sem o ruído dos maxilares a esmagarem as pipocas) é uma heresia que quebra os rituais do grande ecrã.
Pois, mas no entanto a Terra movese e as coisas vão mudando. A questão não é a da substituição dos livros de papel por livros virtuais, é a coexistência das novas formas com as antigas e isso é bom. Se outro benefício não tivesse trazido, a internet reaproximou de facto as pessoas da escrita e da leitura.
Com a net os amigos voltaram a escrever uns aos outros, os mais novos aprenderam a corresponderem-se – o que não acontecia há umas duas gerações – e até os blogs reaproximaram as pessoas do prazer de ler os pensamentos íntimos uns dos outros.
A net não está a matar a literatura – nem qualquer outra forma de criação artística e intelectual – o que torna é possível olhar para ela (e consumi-la) de outra forma. Não há que ter medo.
Sugestão: leiam como a BBC está a experimentar criar e enviar reportagens de televisão em wi-fi e com meios comuns (handycam, laptop, telemóvel) no seguinte local: http://www.journalism.co.uk/news/story814.shtml