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16 de Janeiro de 2009 às 15:51

Ary dos Santos ou a voz indomada e indomável

José Carlos Ary dos Santos morreu há vinte e cinco anos: de álcool, de desespero e de solidão. Tudo isso foi por ele procurado em êxtase, em euforia, em excesso. Tinha 46 anos e uma existência que, de certo modo, correspondeu às exigências e às lutas da época que lhe coube viver. E Ary nunca desistiu, nunca contornou obstáculos, cara a cara, frente a frente, pegou o toiro pelos cornos, como escreveu numa canção célebre. De facto, a "Tourada", mais do que uma metáfora, era a grande analogia da sua vida.

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Ele morava na Rua da Saudade, na encosta do Castelo de São Jorge, rés-do-chão de um prédio onde, em épocas distintas, havia sido residência de José Rodrigues Miguéis, o imenso romancista deploravelmente esquecido; de Alexandre O’Neill e de Fernando Tordo. Eu habitava mais abaixo, na Rua Norberto de Araújo, húmida e estreita, encostada à antiga muralha fernandina. Até lá, quase noventa degraus, que deitavam abaixo o coração mais empedernido – quanto mais o meu, estremecido e acelerado quase sempre.

Ocasionalmente, encontrávamo-nos, nas tascas, nos modestos restaurantes da zona, ele brincava com os meus três filhos, contava episódios mirabolantes à minha mulher, ríamo-nos com os seus desaforos, admirávamos a sua coragem tanto física como moral. Um ser tonitruante, narcísico, venenoso como uma cascavel, generoso, atento, cordial e afectuoso como o último dos cavalheiros. E um trabalhador infatigável. O Ary dos Santos possuía a moral proletária do trabalho; e a marca da sua aristocracia provinha, directamente, da grandeza de alma e da displicência com que esbanjava um talento tão magnífico como sumptuoso. Grande bebedor, grande pecador, grande blasfemo, grande destruidor de mitos e de aldrabices.

Conheci-o na redacção da revista "Eva", dirigida por uma mulher distintíssima, Carolina Homem Christo, e onde trabalhava gente da estirpe de Carlos de Oliveira, Maria Judite de Carvalho, Rogério de Freitas e José Cardoso Pires. Ele fez umas entrevistas curtas e bizarras; eu, uns textos estranhíssimos sobre bruxas e ruas sem nome. Éramos uns miúdos, eu um pouco mais velho do que ele, e logo assim saíamos da revista avançávamos para A Brasileira do Chiado, centro do mundo e ponto de encontro de tudo o que era gente importante no jornalismo, nas artes, no teatro e na literatura.

Deixei de o ver porque, entretanto, eu encontrara colocação num jornal semanal, "Cartaz", cujo chefe de redacção, Armindo Blanco, tinha tanto de talentoso como de mau feitio. Mais tarde, com ele voltei a trabalhar, n’"O Século Ilustrado", um ou dois anos antes de Blanco viajar para o Brasil, onde morreu, nos anos de 90. O Ary dos Santos, entretanto, enveredara nos meios da publicidade, e reencontrei-o, algumas vezes, nos escritórios da agência "Êxito", dirigida por Fernando d’Almeida, um craque naquela profissão. Eu escrevia pequenos textos, para arredondar a conta, ao fim do mês, e participei numa equipa constituída por Alves Redol, Daniel Filipe, Álvaro Guerra, Cardoso Pires, que mantinha uma rubrica, "Pequena Crónica do Banal", diariamente apresentada na Rádio Renascença, como rubrica de um programa de duas horas, "Êxito", que era patrocinado pelos anunciantes da agência. Parte dessas crónicas deram origem a um belo livro do Redol, "Histórias Afluentes", e, remanejadas e reescritas, as minhas republiquei-as, em jornais, revistas e livros.

O Ary não era, apenas, um génio na publicidade (como, aliás, o O’Neill), foi o autor de letras extraordinárias, para fados e canções. As parcerias com Fernando Tordo (outro formidável autor e letras e de músicas, além de originalíssimo cantor) e com Carlos do Carmo deram resultados incomparáveis. E pertencem à selecta mais rigorosa da música popular portuguesa. Um dia, o Tordo, com a coragem e a dignidade ética que se lhe reconhecem, disse: "Os poemas do José Carlos têm uma importância muito maior, pela qualidade e pela profunda originalidade, do que os do Vinicius de Moraes." E eu estou de acordo. Devíamos, cada um de nós, debruçarmo-nos, mais atentamente, sobre a natureza lírica e a efabulação poética dos poemas de Ary, e não somente nas daqueles expressamente escritos para ser cantados. E corarmos de vergonha por sermos cúmplices da conspiração de silêncio, ou pelo desdém atrevido e ignorante com que alguns medíocres preopinantes se referem ao grande poeta.

Quando morreu, a 18 de Janeiro de 1984, uma multidão comovida aguardava o esquife no Alto de São João. Ouviram-se gritos: "Viva Ary dos Santos!", e uma floresta de punhos erguidos saudava o homem que escreva sobre o povo, as ruas e os bairros com o sentimento e a emoção de Cesário Verde. Matamos duas e três vezes aqueles de nós que se alevantaram sobre a média.

Chegamos, até, a cercá-los de infâmia. Não chega, porém, para os naufragar no oceano do esquecimento. Mais tarde ou mais cedo alguém fará a sua recuperação. No caso de José Carlos Ary dos Santos ele pagou bem caro o facto de ser militante comunista e de assumir bem alto a sua homossexualidade. Porém, as suas canções ainda se cantam e ainda se ouvem: falam de coisas simples e modestas como o amor, a grandeza do trabalho, a luta incansável por dias melhores, a natureza cívica dos bairros, a beleza dos amanheceres e o mistério insondável das noites de Lisboa.

Ele pertencia a essa estirpe de portugueses que, como diz Fernando Tordo, "era gente importante que desdenhava da sua importância". Vinte e cinco anos depois, falta-nos o seu grito, a sua voz indomável, a sua presença livre e sem dono.

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