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18 de Outubro de 2005 às 13:59

Angola é vossa!

Na terra dos Agostinhos Netos, Jonas Savimbis e outros já idos, pode-se ser português e, ao mesmo tempo, angolano, sem o apodo neocolonialista, noutros cantos albardado a um tuga que se assuma, também, africano.

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Os olhos de Zédu perseguem a bola que voa entre os pés descalços dos meninos, vestidos de poeira, suor e sorrisos.

Há décadas que o ritual se mantém, numa magia que se sobrepôs ao somar dos anos, aos dias de guerra, ao esventrar de um país pela loucura dos adultos, a sede de poder.

Zédu continua a jogar à bola, vestindo-se de menino, em corpo de adulto, num país abençoado pelos Deuses e traído pelos humanos.

Nos escombros do Huambo (antiga Nova Lisboa), um bando de meninos passarinhava nos restos do jardim, balizando o jogo entre os cepos das árvores.

Num cenário quase irreal, decorria a aula de educação física. Com o professor a ditar-lhes instruções, em Ovimbundu, que só ele parecia escutar, no meio da gritaria.

«Olha lá! Ó Mané! Pára de distribuir porrada! Isto não é política é futebol!» – gritou-lhes, finalmente, em português, travando a algazarrada.

«Vamos lá a ver se metem isto nessas cabeças!» – disparou ele, esticando-se no tempo de antena concedido. «Isto é para se jogar com e não contra. Esse é o segredo do futebol! Só assim vale a pena jogar».

E eu fico ali a ver os meninos, a tentarem digerir aquela colecção de palavras, enquanto o Mané, sentado em cima da bola de trapos, a ensopava de suor.

E o apito do prof. lá destravava de novo a alegria pelo terreiro fora. Pés a martelarem voos de pássaro em céus de magia. Onde os Zédus podem ser meninos e presidentes, jogar entre linhas, os sonhos de um povo.

É assim há décadas. E porque não o há-de continuar a ser? Se na magia do futebol, a vida se pode sonhar deslumbrante, terreiro de golos e alegrias.

Onde não é preciso camisa nem pão. Apenas luar.


Lá longe, algures, Akwá acertou em cheio com a «chincha» na baliza do Ruanda, atirando com Angola para o «Mundial» na Alemanha, e as misérias para amanhã. Que hoje, dia de festa no futebol, só cabem títulos quentes, nas manchetes da vida.

«Ganhámos!», gritou-se em Luanda, com uma paixão pela primeira vez superior, à arrancada semanalmente, naquelas bandas, pelos sucessos do Benfica, do Porto ou do Sporting - «somos os maiores!».

E o país salta do rol dos piores palcos de guerra da idade moderna, para o dos sonhadores, sem idade. Onde todos, finalmente, podem remar na mesma direcção.

Os olhos do Zédu continuam a perseguir a bola, do país que se joga à sua volta. Onde ele é treinador-jogador, mas também árbitro. Administrador e, cada vez mais, proprietário.

Mas, nos terreiros dessa Angola, bandos de meninos passarinham futebóis onde se joga com, em vez de contra, e o futuro renasce num passe mágico, porque as fintas se fazem do que se sonha. E não do que se tem.

Na terra dos Agostinhos Netos, Jonas Savimbis e outros já idos, pode-se ser português e, ao mesmo tempo, angolano, sem o apodo neocolonialista, noutros cantos albardado a um tuga que se assuma, também, africano.

Ou, pelo menos, essa é a vertigem dos meninos sem-raça, sem-fronteiras na alma, que perseguem as trapeiras, roladas em bolas, nos terreiros de Angola, nos cimentos, alcatrões, ervados e relvados, onde se joga com, e não contra.

Porque esse é o segredo do jogo da vida. De se ser menino, até morrer, com estrelas nos olhos e um brilho na alma.

Mané limpa o suor da testa e sai de cima da bola que aprendeu, finalmente, não poder morar num só coração, de único dono. E sonha que Zédu, lá longe em Luanda, pudesse jogar no mesmo terreiro. Menino em corpo de adulto. Todos os dias.

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