Opinião
A tristeza do viver indecente
Pertenço a uma geração que pouco mais desejou do que ser feliz. Para a obtenção dessa pequena ração de regozijo existencial tornou-se imperiosa a luta contra o salazarismo.
Pertenço a uma geração que pouco mais desejou do que ser feliz. Para a obtenção dessa pequena ração de regozijo existencial tornou-se imperiosa a luta contra o salazarismo. O antifascismo foi, antes de tudo, uma poderosa frente moral, que reuniu, no mesmo singelo desejo de liberdade, republicanos, monárquicos, comunistas, católicos, socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, anarquistas. A exaltação dos tempos correspondia às imensas dificuldades da peleja. Havia algo de romântico e de incauto na acção daqueles que se envolviam nesse compromisso. Eis porque muitos de nós, logo após Abril, recusámos prebendas e lugares de favor. Não todos; muitos de nós, repito.
Com excessiva frequência leio nos jornais, vejo nas televisões, os nomes e os rostos dos que preferiram zelar pela vidinha, abjurando do que se pensava ser as suas fundas convicções. Foram recompensados. Afinal, Roma sempre paga a traidores. Porque de traição se trata. Perdeu-se não só a grandeza de um combate singular, por desigual, como se criaram novos padrões de comportamento. Prefiro um fascista com carácter a um trânsfuga, habitualmente de cara celestina.
A extrema-esquerda forneceu ao «sistema» um avantajado rol de renegados. Todos eles, justificando o injustificável, expõem, invariavelmente, o mesmo argumento: eram contra o PCP. Nos anos que antecederam a queda do regime, declaravam-se, num alarido congestivo, «anti-revisionistas». Numa espécie de palavrão de taberna atacavam o «eurocomunismo», como degeneração pútrida da pureza marxista. A terminologia está repleta de tópicos lentos, extensos e pouco imaginativos. Quase todos se tornaram «especialistas» em comunismo, e meteorologistas dos ventos da fronda e da revolução. Todos viraram à Direita, são quadros superiores de multinacionais, de bancos; directores e subdirectores de jornais; assessores, secretários de Estado e ministros; deputados da nação e da euronação.
Tudo isto dá para rir, não fora trágico. O sentido gremial desta gentalha torna-a semelhante a uma associação secreta: ajudam-se e entreajudam-se; onde está um, está o outro. Não perdem tempo com as miuçalhas da dignidade. Periodicamente, descrevem o seu passado como esquírolas sentimentais de juventude. Como sempre, apontam que as suas razões foram históricas, e que o seu contencioso com o PCP decorria do arrebatado amor que sentiam pela democracia. E citam muitos autores. Designam muitos livros.
A catacumba moral onde tombaram representa o que de mais desprezível existe no comportamento humano. Não é, somente, por denegarem uma época e a grandeza daqueles que conferiram à pátria amordaçada uma luminosa fisionomia ética. É, sobretudo, por escarrarem na sua própria juventude. Ainda por cima não são muito competentes. No caso da Imprensa, é um dó d’alma. Escrevem mal e apressado, porém lustroso. Conheço um caso em que o dono do jornal chegou a dizer ao director, seu obsequioso empregado: «Ó homem!, não é preciso tanto!»
Assiste-se, de há duas décadas a esta parte, a um desfile de neoconversos, cujo servilismo os leva ao desconcerto de, cada vez mais, se acostarem à direita da Direita. Esta, claro!, menospreza-os e serve-se deles, com tenaz persistência. Há por aí um editoralista, cujo nome desejo colocar à margem deste texto, o qual desceu tão baixo que nem sequer é uma ruína moral: é um boato de homem. A regra não falha. Nenhum deles experimenta dificuldades económicas. Todos eles existem entre a naftalina da militância «anticomunista» e a pressurosa justificação da invasão norte-americana ao Iraque. O coliseu dos seus anacronismos serve de arena ao burlesco espectáculo da decadência. Acusam as «esquerdas» de carência de ideias, e protagonizam o mais excruciante dos vazios intelectuais.
Eram mais comunistas do que os comunistas. Empunhavam o Livro Vermelho de Mao Tsé-tung e levavam tatuado nas almas o rosto grave de Estaline. Enver Hoxa, outro dos seus amados. A Albânia, «farol do socialismo», como escreveu, empolgado, um ex-maoista, ex-redactor do «Expresso», ex, ex, ex-tudo. O maior escritor do mundo, Ismail Kadaré, imitador de Hemingway, inúmeras vezes fotografado, ao lado de Hoxa, para quem olhava com embevecida ternura. Kadaré também renegou com estrépito.
Em que zona enigmática se situam as convicções desta gente? Eram tão convictamente «esquerdistas», quanto convictamente são, hoje, homens de mão da Direita? Que paraíso e que inferno defendem ou condenam? Que credibilidade possuem? Que livros possuem nas bibliotecas: os da juventude traída ou os da idade adulta desacreditante?
Dizia António Sérgio que a tentação da irresponsabilidade conduz aquele que a pratica ao abismo da indecência.
APOSTILA - Respiremos um pouco e devagar. Um respirar saudável. E leiamos um belíssimo texto, «Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista», do grande historiador António Borges Coelho, simultaneamente um homem raro pela integridade, pelo talento e pela modéstia. Que nos propõe esta leitura? O conhecimento da alma da capital, através daquilo que a definia. Diz Borges Coelho: «Os nomes são breves colcheias de som. Ao apelarmos as ruas, vibram no ar vozes, sentidos, cheiros, a luz, a cor. Morreram ruas, morreram nomes, tapados com a cal do tempo e os sinais de outros nomes. Chão de Alcamim. Varadouro das Naus. Adro da Conceição. Arco dos Pregos. Beco do Gaspar das Naus. Porta de Lucas Giraldes. Rua de Quebra Cus, de Calca Frades e de Pinovai. Travessa de Escancha-lhe a Perna». Escrito num idioma de lei, esta magnífica edição da Caminho fala-nos de «uma velha humanidade portuguesa que prolongamos com os nossos gestos e as nossas vozes». Um homem da estatura ética e intelectual do prof. dr. António Borges Coelho resgata-nos da tristeza do viver indecente. Dilecto: não é uma prenda de Natal - é um livro para toda a vida.