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Opinião
02 de Março de 2011 às 11:49

A tentação militar na Líbia

A guerra civil na Líbia está num impasse e as ameaças de intervenção militar de estados europeus e de Washington poderão tornar ainda mais complicada uma situação caótica.

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As forças rebeldes aparentam não ter capacidade militar para derrubar Gadaffi que se mantém entrincheirado em Tripoli, controla boa parte do ocidente do país e o porto de Sirte a meio caminho entre a capital e Benghazi.

As tropas, milícias e mercenários do coronel não conseguem, por sua vez, lançar uma ofensiva para recuperar as cidades perdidas no leste do país.

Gadaffi é ainda senhor de Sabha, a principal cidade na margens do Saara, mas a maior parte dos desertos do sul são domínio de tuaregues e outras tribos de fidelidades indefinidas.

Vários políticos reivindicam em Benghazi representar um governo provisório ou um conselho nacional como alternativa a Gadaffi, mas não existe uma liderança política que possa ser reconhecida internacionalmente como representativa de uma qualquer futura autoridade de transição.

As sanções internacionais aprovadas contra Gadaffi só surtirão efeito a prazo apesar de limitarem no imediato a capacidade do coronel para mobilizar recursos financeiros e militares e sirvam igualmente para fomentar deserções entre os seus fiéis.

O dedo no gatilho
À medida que se agravam a crise humanitária provocada pela fuga de trabalhadores imigrantes para o Egipto e a Tunísia e a ameaça de uma vaga de clandestinos cruzarem o Mediterrâneo, além de se acentuar a quebra nas exportações de petróleo e gás natural, surge a tentação de intervir militarmente na Líbia.

Numa primeira fase apoiar militarmente diversas e conflituosas facções anti-Gadaffi em Benghazi e no leste da Líbia é a óbvia opção numa momentânea convergência de interesses estrangeiros - alguns países da União Europeia, os Estados Unidos e mesmo a China - para precipitar a queda do coronel.

A França adiantou-se no envio de auxílio humanitário para Benghazi, enquanto conselheiros militares e operacionais de diversos serviços secretos se fizeram ao terreno, mas nenhuma pressão, mediação ou patrocínio estrangeiros têm hipóteses de sustentar uma frente unitária que só virá eventualmente a ganhar corpo mediante negociações e confrontos entre as facções líbias anti-Gadaffi.

Armar grupos que não se controlam, de orientações políticas incertas e entre os quais se contam também islamitas radicais é, por outro lado, um tiro no escuro com efeito ricochete garantido.

Da longínqua Austrália, pela voz do ministro dos negócios estrangeiros Kevin Rudd, surgiu o mote para a União Europeia - que falhou no essencial todas as políticas de cooperação com os estados do Magrebe - e Washington - outro caso de embaraço diplomático do Bahrein ao Egipto - começarem a admitir a hipótese de intervenção militar na Líbia, enquanto Moscovo foi célere no seu "nyet".

Um risco excessivo
A imposição de zonas de exclusão aéreas sem cobertura legal da ONU - concedida de forma indiscutível no caso da Bósnia-Herzegovina de 1993 a 1995 e controversa quanto ao Iraque entre 1992 e 2003 - e, tendo em conta que quem terá de tirar as castanhas do lume serão em primeiro lugar os estados europeus mais expostos aos riscos da Líbia, representa uma tentação por demais excessiva.

Independentemente do Tribunal Penal Internacional puder vir a tipificar as acções de Gadaffi como crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, a entrada no conflito de forças militares estrangeiras representa para todos os efeitos a intervenção numa guerra civil.

Uma incursão militar com participação britânica, italiana e francesa nunca deixaria de ser vista como a mais cínica contrição de pecados por parte de antigos prevaricadores e parceiros económicos de Gadaffi.

O contributo dos Estados Unidos para uma acção militar geraria uma onda de protestos contra Washington que até agora esteve ausente das revoltas árabes.

Operação morosa e arriscada
Para ser eficaz uma acção desse tipo (com prazo impossível de prever) teria, após definir com precisão as áreas alvo de vigilância e actuação, de impor zonas de exclusão aérea a todos aviões e helicópteros militares além de voos civis não-autorizados.

O objectivo da operação não é claro e, no imediato, zonas de exclusão aérea apenas consolidariam as linhas de fractura existentes entre os beligerantes.

Aguardar, depois, que protestos, revoltas, atentados e deserções acabem por reduzir cada vez mais as zonas sob controlo de Gadaffi deixa no escuro as condições em seria eventualmente prestado apoio militar no caso do coronel continuar a reprimir os opositores.

Sem o contributo dos estados vizinhos - Egipto, Tunísia e Argélia - e limitada a bases em Malta, Chipre, Grécia e Itália, contando com a oposição de estados da NATO como a Turquia, o cunho unilateral da intervenção teria custos políticos e diplomáticos superiores a qualquer ganho imediato

A eficácia da intervenção implicaria ainda alargar o âmbito das operações de forma a interditar a movimentação de tropas e equipamento militar no solo (basta lembrar que o massacre de Srebrenica em Julho de 1995 ocorreu apesar da zona de exclusão aérea da NATO e mesmo da presença de capacetes azuis no terreno) além de obrigar a bloquear surtidas da marinha fiel a Gadaffi e monitorizar o tráfego marítimo.

A mobilização de meios seria necessariamente significativa e obrigaria a coordenar operações com facções anti-Gadaffi com a consequência de enlear desde logo forças estrangeiras nos conflitos que irão prosseguir após a queda de Tripoli.

O risco de confrontos directos com apoiantes de Gadaffi numa situação de guerra implicaria também reavivar fúrias de todo o tipo contra o que seria visto por muitos como mais uma investida imperalista em terras árabes.

O risco de uma intervenção militar é excessivo, certamente contraproducente, e a maior parte das opções que restam são más, mas as coisas são o que são.

A inevitável turbulência
A guerra civil na Líbia seguirá o seu curso e, porque o petróleo encarece e os temores de outras sublevações em estados produtores estão bem vivos, a confluência de interesses contra Gadaffi acabará por prevalecer.

Na Líbia, tal como no Iémen, as estruturas do estado são demasiado frustes e a ruptura dos equilíbrios e fidelidades tribais degeneram em guerras civis e movimentos separatistas.

A turbulência e violência na Líbia persistirão depois da queda da Gadaffi, mas, tal como noutros estados árabes, tudo isso é parte de um ciclo imprevisível de conflitos a que as autocracias do Médio Oriente não podem escapar.


Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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