Opinião
A responsabilidade das crenças económicas
A revista britânica The Economist é um dos bastiões do liberalismo económico na imprensa internacional. O seu último dossiê constitui por isso uma referência insuspeita para procurar pistas de mudança na opinião convencional sobre o funcionamento do sistema financeiro.
O seu último dossiê constitui por isso uma referência insuspeita para procurar pistas de mudança na opinião convencional sobre o funcionamento do sistema financeiro*.
Na linha de muitos estudos empíricos, reconhece-se, finalmente, um padrão que terá de ter implicações radicais na futura mudança institucional das economias: o número de crises financeiras mais do que triplicou desde 1973, quando comparado com o período dos "trinta gloriosos anos" do pós-guerra, frequentemente apelidados de anos de "repressão financeira" pela teoria económica convencional. Por que é que o sector financeiro se tornou tão instável? Para responder a esta pergunta a The Economist invoca, entre outros, John Maynard Keynes (1883-1946), Hyman Minsky (1919-1996) e John Kenneth Galbraith (1908-2006).
Estes economistas constituem as principais referências de uma tradição de análise económica, crítica e realista, que há muito vem expondo os mecanismos e processos que fazem com que a instabilidade e a crise sejam indissociáveis das épocas do capitalismo em que os mercados financeiros liberalizados comandam o processo económico**.
O seu quadro teórico incorpora hipóteses plausíveis, como a incerteza radical face ao futuro ou o papel de convenções falíveis na tomada de decisão. Como dizia Keynes, na esfera financeira, quando a especulação predomina, "mais vale fracassar com as convenções do que ser bem sucedido contra elas". De facto, num contexto marcado por pressões concorrenciais intensas, quase ninguém está em condições de resistir à busca de níveis de rendibilidade que se revelam, mais tarde, insustentáveis.
Os lucros excessivos que podem ser obtidos na esfera financeira, por comparação com outros sectores da actividade económica, alimentam assim os excessos que geram a catástrofe paga depois por todos. Sem controlo adequado, os ciclos de crédito contribuem para a alternância de períodos de euforia e de pânico que desestabilizam as relações económicas, podendo conduzir a uma interacção perversa entre a dívida acumulada e a deflação. Hyman Minsky, cuja hipótese da instabilidade financeira do capitalismo tem inspirado alguns dos principais estudos históricos nesta área, dizia por isso que o "sistema financeiro é demasiado importante para ser deixado ao mercado".
Infelizmente, esta corrente, hoje amplamente citada no jornalismo económico de qualidade, tem sido praticamente ignorada no ensino da Economia e na condução da política económica. A ausência de pluralismo na ciência económica tem um preço muito elevado. A hegemonia praticamente incontestada da hipótese dos mercados eficientes e seus derivados moldou a visão da esmagadora maioria dos economistas, dos decisores políticos e dos reguladores.
De acordo com esta hipótese, os mercados financeiros, povoados de agentes mecanicamente racionais que transformam incerteza em risco calculável, tendem a incorporar toda a informação disponível no preço dos activos. Esta hipótese é a teoria económica panglossiana no seu melhor: tudo correrá pelo melhor no melhor dos mundos. A especulação, ou melhor, a arbitragem, é estabilizadora e a inovação financeira é por definição benigna.
O monopólio intelectual desta corrente não alimentou apenas a complacência face à instabilidade. Por mais que agora procurem escamoteá-lo, a verdade é que muitos economistas tiveram – como ideólogos, conselheiros políticos, membros dos bancos centrais ou das instituições internacionais – uma participação directa na construção política da actual arquitectura financeira global. Mais interessante ainda, muitos participaram, como empreendedores inovadores e como engenheiros de mercado, na definição e aplicação de fórmulas e modelos matemáticos em novos e sofisticados produtos financeiros que permitiram um desenvolvimento sem precedentes, por exemplo, dos mercados de derivados. Estes cresceram como resposta à instabilidade financeira crescente, abrindo, ao mesmo tempo, novas oportunidades de especulação que haveriam de alimentar ainda mais a instabilidade no futuro. Neste processo, numerosos economistas académicos ganharam muito dinheiro, elemento que não é despiciendo numa ciência onde predominam concepções muito estreitas sobre as motivações humanas.
É uma das ironias da história económica que a acção de muitos economistas académicos convencionais tenha sido parcialmente responsável pelo retorno dos padrões de instabilidade que tornaram cada vez mais pertinente a teoria económica crítica, que sobreviveu nas margens da disciplina. É por isso preciso trazê-la para o centro do ensino e do debate sobre as reformas económicas. Quem tem medo do pluralismo?
* "Greed and fear – A special report on the future of finance", 24 de Janeiro de 2009.
** O leitor interessado pode encontrar estudos de alguns dos principais economistas desta corrente no Political Economy Research Institute (www.peri.umass.edu) ou no Levy Economics Institute (www.levy.org).
www.ladroesdebicicletas.blogspot.com
Na linha de muitos estudos empíricos, reconhece-se, finalmente, um padrão que terá de ter implicações radicais na futura mudança institucional das economias: o número de crises financeiras mais do que triplicou desde 1973, quando comparado com o período dos "trinta gloriosos anos" do pós-guerra, frequentemente apelidados de anos de "repressão financeira" pela teoria económica convencional. Por que é que o sector financeiro se tornou tão instável? Para responder a esta pergunta a The Economist invoca, entre outros, John Maynard Keynes (1883-1946), Hyman Minsky (1919-1996) e John Kenneth Galbraith (1908-2006).
O seu quadro teórico incorpora hipóteses plausíveis, como a incerteza radical face ao futuro ou o papel de convenções falíveis na tomada de decisão. Como dizia Keynes, na esfera financeira, quando a especulação predomina, "mais vale fracassar com as convenções do que ser bem sucedido contra elas". De facto, num contexto marcado por pressões concorrenciais intensas, quase ninguém está em condições de resistir à busca de níveis de rendibilidade que se revelam, mais tarde, insustentáveis.
Os lucros excessivos que podem ser obtidos na esfera financeira, por comparação com outros sectores da actividade económica, alimentam assim os excessos que geram a catástrofe paga depois por todos. Sem controlo adequado, os ciclos de crédito contribuem para a alternância de períodos de euforia e de pânico que desestabilizam as relações económicas, podendo conduzir a uma interacção perversa entre a dívida acumulada e a deflação. Hyman Minsky, cuja hipótese da instabilidade financeira do capitalismo tem inspirado alguns dos principais estudos históricos nesta área, dizia por isso que o "sistema financeiro é demasiado importante para ser deixado ao mercado".
Infelizmente, esta corrente, hoje amplamente citada no jornalismo económico de qualidade, tem sido praticamente ignorada no ensino da Economia e na condução da política económica. A ausência de pluralismo na ciência económica tem um preço muito elevado. A hegemonia praticamente incontestada da hipótese dos mercados eficientes e seus derivados moldou a visão da esmagadora maioria dos economistas, dos decisores políticos e dos reguladores.
De acordo com esta hipótese, os mercados financeiros, povoados de agentes mecanicamente racionais que transformam incerteza em risco calculável, tendem a incorporar toda a informação disponível no preço dos activos. Esta hipótese é a teoria económica panglossiana no seu melhor: tudo correrá pelo melhor no melhor dos mundos. A especulação, ou melhor, a arbitragem, é estabilizadora e a inovação financeira é por definição benigna.
O monopólio intelectual desta corrente não alimentou apenas a complacência face à instabilidade. Por mais que agora procurem escamoteá-lo, a verdade é que muitos economistas tiveram – como ideólogos, conselheiros políticos, membros dos bancos centrais ou das instituições internacionais – uma participação directa na construção política da actual arquitectura financeira global. Mais interessante ainda, muitos participaram, como empreendedores inovadores e como engenheiros de mercado, na definição e aplicação de fórmulas e modelos matemáticos em novos e sofisticados produtos financeiros que permitiram um desenvolvimento sem precedentes, por exemplo, dos mercados de derivados. Estes cresceram como resposta à instabilidade financeira crescente, abrindo, ao mesmo tempo, novas oportunidades de especulação que haveriam de alimentar ainda mais a instabilidade no futuro. Neste processo, numerosos economistas académicos ganharam muito dinheiro, elemento que não é despiciendo numa ciência onde predominam concepções muito estreitas sobre as motivações humanas.
É uma das ironias da história económica que a acção de muitos economistas académicos convencionais tenha sido parcialmente responsável pelo retorno dos padrões de instabilidade que tornaram cada vez mais pertinente a teoria económica crítica, que sobreviveu nas margens da disciplina. É por isso preciso trazê-la para o centro do ensino e do debate sobre as reformas económicas. Quem tem medo do pluralismo?
* "Greed and fear – A special report on the future of finance", 24 de Janeiro de 2009.
** O leitor interessado pode encontrar estudos de alguns dos principais economistas desta corrente no Political Economy Research Institute (www.peri.umass.edu) ou no Levy Economics Institute (www.levy.org).
www.ladroesdebicicletas.blogspot.com
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