Opinião
A fraude e a mistificação
O ano fecha a porta com estrondo. O rasto que fica, toca o drama e a tragédia. Neste último caso, os milhares e milhares de mortos causados pelo sismo e pelo maremoto, cruelmente sentidos em sete países asiáticos, pertencem à natureza do horror.
Talvez possamos ilustrá-lo com a terrível interrogação formulada por aquela mãe indonésia, com o filho morto nos braços: «Onde está Deus?» Diz-nos a sabedoria da ciência que Deus nada tem a ver com o assunto. Não se trata de uma questão de fé. A conclusão possui a evidência do admissível. E nem sequer é preciso acentuar ou acrescentar qualquer pormenor ao que, insistentemente, nos diz a física: basta atentar nos relatórios das várias instituições mundiais. O homem, a ganância do homem está a destruir o planeta.
Cedo à tentação de comentar a reeleição de Bush, que deixa um vestígio de ruínas e de sangue no Afeganistão e no Iraque, e que, sem variações, confirma o poder omnipotente do império, e a desfaçatez impudica dos seus sequazes e apologistas. Gore Vidal: «Ou damos cabo do capitalismo ou o capitalismo dará cabo de nós. Temos de travar o carácter insano deste empreendimento». O espelho da realidade põe-nos em causa. Galbraith assinalou-o, há semanas, numa notável entrevista à revista brasileira «Veja».
O drama português prossegue sem intervalo. São ininteligíveis as razões que arremessam os políticos a estatelar-se na incongruência. Ainda estamos para descortinar o que conduziu Jorge Sampaio à obscura decisão de designar Pedro Santana Lopes primeiro-ministro. Saiu-nos, na roldana, quatro meses de assombro. «Ninguém sabe quem é o outro», afirmou São Tomás de Aquino. Talvez. No caso vertente, o homem indicado não era, propriamente, um hieróglifo. Sabia-se-lhe o estilo, reconhecia-se-lhe o estofo. Porém, presumíamo-lo mais sagaz. Foi armadilhado por Paulo Portas, que o queimou com o metal ardente da astúcia e com os inquietantes cálculos da intriga.
De súbito, Santana Lopes encontrou-se só. Os que o haviam advertido da desgraça iminente, afastaram-se, fatigados da indiferença por ele demonstrada. Não há minúsculas nem maiúsculas neste caso. Percebemos que Pedro Santana Lopes remove, suicidamente, quem dele gosta, e quase se obriga à abjecção de não ter amigos - apenas instantes de amizade. Afinal, ele resume o carácter superficial, arteiro, deslocado e, até, mutilado da geração à qual pertence - que não é a «nova geração», porque a realmente «nova», a «outra», a que está aí para o transferir, observa-o sem piedade e sem indulgência. Estão a despedi-lo e ele não dá por isso.
Sócrates também não é a «nova geração». Não conseguiu, conseguirá alguma vez?, transpor o fabulário do guterrismo, e tratar-nos como adultos, não como imbecis pacíficos. Que quer? O poder, somente? As situações urdidas não apresentam nada de original, nem nenhuma proposta que nos suscite uma viva e eficiente actividade da imaginação. Até agora, José Sócrates não passa de um chato.
O ano encerra com a literatura portuguesa atacada de astenia. Nunca se escreveu tão mal, e tão academicamente risível - como agora. O que por aí se edita tem as características da fraude. Salvam-se Vasco Pulido Valente e Mário Cláudio, este distinguido com o Prémio Pessoa, que nos resgatam das escorrências de tanta prosa horrenda. Claude Roy: «O mau escritor tem, sempre, o estofo de um canalha».
A excelsa Clara Ferreira Alves, grande jornalista de si própria, ex-redactora do «Correio da Manhã», ex-assessora de Imprensa do PS, ex-componente da Redacção do «Expresso», ex-apresentadora de televisão, cobriu-se, ainda mais, do ridículo que a torna objecto de devastadoras anedotas, ao afirmar, no «Independente», a seguinte truanice: «Ando há anos a educar este povo». Declara que «não [tem] grande simpatia pelos portugueses» e, mais: «Não converso com Lisboa, nem com o país». O povo, ingrato, não lhe agradece. Os portugueses, tristíssimos com este génio da nação, soluçam, de luto carregado, um incontido desespero. A pátria, de rastos, pede fervorosamente, que a mimosa preopinante lhe fale, nem que seja baixinho, uma frase, uma palavra, um som, por escasso que fora.
A fraude e a mistificação continuam sem freio.
Dilecto: Bom Ano!, embora ninguém acredite?