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Opinião
05 de Dezembro de 2006 às 14:34

A Flexisegurança

Quem, não conhecendo o país, assistisse à maior parte dos comentários feitos na passada semana ao modelo de regulação laboral designado de “flexisegurança” concluiria provavelmente várias coisas:

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Quem, não conhecendo o país, assistisse à maior parte dos comentários feitos na passada semana ao modelo de regulação laboral designado de "flexisegurança" concluiria provavelmente várias coisas:

(i) que Portugal tem um sistema de protecção do emprego que proporciona maior segurança aos trabalhadores do que a existente na Dinamarca ou na Holanda (os países de origem do modelo);

(ii) que a protecção no desemprego entre nós só não é superior à desses países por falta de disponibilidade orçamental;

(iii) que se trata de um modelo recente e insuficientemente testado; e

(iv) que a sua adopção entre nós seria, pelo menos, indesejável, face aos valores culturais e cívicos nacionais.

Todas estas conclusões resultariam, porém, de um processo de obscurecimento dos factos, muito mais que das realidades concretas em jogo. Vale, por isso, a pena lançar alguma luz sobre estas, começando por dois aspectos simples e factuais. O primeiro refere-se à novidade do modelo.

Na verdade, se o termo em si mesmo é relativamente recente, cunhado para o sistema adoptado na Dinamarca na década de 90, as suas origens remontam ao acordo de concertação social de Wassenaar, na Holanda, que data de 1982. A experiência sobre o tema já é, portanto, suficientemente longa e até diversificada, dado que, como necessariamente sucede quando se aplicam inteligentemente "modelos", as variantes desses dois países são consideravelmente diferentes. Semelhante é, contudo, a redução da taxa de desemprego que, dos dois dígitos em que se situava antes da introdução do sistema, desceu sustentadamente para menos de 4%, ao mesmo tempo que cresciam a participação na população activa e o emprego.

O segundo ponto prévio a focar respeita à questão orçamental e resulta de uma aritmética simples. Se Portugal conseguisse uma taxa de desemprego de 3.7% ou 3.8% (valores mais recentes da Dinamarca e da Holanda, respectivamente), em lugar dos actuais 7,2%, poderia, com o mesmo encargo orçamental, financiar gastos com o apoio ao rendimento e reintegração dos desempregados que, em termos per capita, seriam praticamente duplos dos actuais. Não tem, por isso, qualquer consistência lógica apontar o nível de 96% do subsídio de desemprego na Dinamarca como um dos factores que impediria a adopção do modelo entre nós.

De onde provêm então as objecções ao modelo e as dificuldades – bem reais – da sua adaptação ao caso português? Uma questão fundamental é a forma como a protecção do emprego é vista pelos parceiros sociais e consagrada na legislação e nas práticas laborais. Também aqui há aspectos prévios fundamentais a explicitar. O primeiro tem a ver com o facto de, nas economias modernas, seja qual for o regime de protecção laboral que adoptam, todos os anos ser destruída uma percentagem significativa de postos de trabalho (15% em países tão diferentes como os Estados Unidos, a Alemanha, a França ou a Suécia), a que corresponde um volume aproximado de criação de novos empregos.

É o número e a qualidade destes que distingue um regime laboral que protege o emprego e fomenta o crescimento económico de um que o não faz. Quando os novos postos de trabalho são em maior número e capazes de absorver tanto os trabalhadores jovens como os idosos, os mais e os menos qualificados, estaremos perante uma verdadeira segurança de emprego.

Quando, além disso, a deslocação se dá de empregos que a tecnologia ou a competitividade tornaram obsoletos para outros mais eficientes, teremos criado um ingrediente essencial ao aumento do rendimento e do emprego.

No polo oposto encontramos uma protecção dos trabalhadores que se traduz na imposição de regras que não permitem a suficiente diversificação salarial e de horários laborais, que tornam proibitivo o despedimento, facilitam as reformas antecipadas (e outros métodos de despedimento por "mútuo acordo", com apoio de financiamento público), mas não estimulam nem a formação, nem a mobilidade. O seu resultado é um mercado do trabalho esclerosado, que protege os insiders, mas exclui os outsiders (jovens, imigrantes ou trabalhadores que procuram reintegrar-se na vida activa), relegando-os para contratos precários e para formas de emprego por conta própria que não são mais do que artifícios para contornar a lei. Nestes casos, em que Portugal se enquadra, regista-se uma absoluta contradição entre a protecção legal ao emprego e o sentimento de segurança dos trabalhadores e de satisfação com o seu emprego. Inquéritos e estudos internacionais ilustram claramente essa correlação negativa, situando-se Portugal entre os países onde a protecção legal é mais forte e a insatisfação e a insegurança é maior.

As razões para isto são muitas e vão desde atitudes cívicas atávicas a concepções da intervenção do Estado desajustadas do enquadramento internacional e macroeconómico em que o país se situa. Estas duas áreas estão, aliás, correlacionadas entre si, como é bem demonstrado pelas respostas à seguinte questão posta aos cidadãos de um conjunto alargado de países pelo World Values Survey: "Acha que reclamar benefícios públicos a que não tem direito é: (i) sempre justificado; (ii) algumas vezes justificado; (iii) nunca justificado?". Entre os cidadãos europeus, apenas os gregos e os franceses são mais complacentes que os portugueses relativamente ao seu "direito" de burlar o Estado. Os dinamarqueses são, em contrapartida, seguidos de perto pelos outros países nórdicos e pela Holanda, os que levam mais a sério a sua responsabilidade cívica, o que lhes permite, entre outras coisas, aceitar uma carga fiscal e conceder um nível de benefícios sociais bem superiores aos dos países mediterrânicos.

Por isso, quando nos disserem que o modelo dinamarquês não é aplicável a Portugal, convém começarmos a reflectir sobre se não teríamos todos a ganhar em criar as condições necessárias para infirmar essa conclusão, em vez de nos satisfazermos em continuar a reivindicar a defesa dos "valores" em que assenta um modelo ineficiente e profundamente injusto.

 

Economista, consultora do BPI

Teodora-Cardoso@Netcabo.pt

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