Opinião
A Europa precisa de uma mudança de "Gestalt"
Angela Merkel conseguiu apoio para medidas que penalizarão os Estados-membros da UE com défices superiores a 60% do PIB
Angela Merkel conseguiu apoio para medidas que penalizarão os Estados-membros da UE com défices superiores a 60% do PIB, o limite nominal do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou PEC, tendo a Alemanha, entretanto, aprovado uma disposição que introduz uma cláusula na sua Constituição que impõe um orçamento equilibrado.
Isto não deixa de ter relação com o facto de dívida em alemão - "Schuld" - também ter o significado de culpa. Mas o que é preciso também se diz em alemão: uma mudança de "Gestalt" que leve ao reconhecimento de que ao passo que os Estados-membros da UE se afundaram em dívida para salvar bancos e fundos de investimento, a União Europeia propriamente dita não tem praticamente nenhuma dívida. Não tinha de facto nenhuma até Maio passado, quando o Banco Central Europeu começou a comprar tranches da dívida pública de alguns Estados-membros.
Isto tem custos duplicados, e não está a resultar. Os spreads dos títulos de dívida pública atingiram 10%, o que é insustentável. Uma séria situação de incumprimento está à vista em vários Estados-membros da Zona Euro.
Uma solução mais simples e menos custosa consistiria em cortar o nó górdio da dívida pública, transferindo uma parte dela para o Banco Central Europeu. Se atingisse 60% do PIB, como consente o Pacto de Estabilidade e Crescimento, reduziria o risco de incumprimento dos Estados-membros mais expostos, baixaria os seus custos de serviço da dívida e enviaria aos mercados financeiros um sinal de que os Estados europeus têm uma resposta proactiva à presente crise, em vez de serem vítimas passivas de agências de "rating" de crédito não-eleitas.
Uma transferência por tranches ("tranche transfer") não seria um cancelamento da dívida. Os Estados-membros cujos títulos de dívida pública fossem transferidos para o BCE seriam responsáveis pelo pagamento de juros, mas a taxas mais baixas.
Contudo, unicamente a estabilização da dívida não será a resposta para a presente crise da Europa. Os governos da UE tencionam cortar tanto a dívida como os défices orçamentais a uma escala que se arrisca a provocar uma deflação induzida por esta "contracção competitiva", negando o compromisso assumido em 2008, aquando da aprovação do Programa Europeu de Recuperação Económica, correndo-se o risco de se ter uma profunda recessão e uma enorme crise de confiança tanto relativamente aos mercados como aos Estados.
O que é preciso é aprender com o "New Deal", de Roosevelt, cujo êxito deu a Truman a confiança necessária para estabelecer o Plano Marshall de que a própria Alemanha beneficiou. E isto tornou-se exequível porque foi possível tomar emprestado para investir através das obrigações do Tesouro dos EUA. Estas não eram contabilizadas na dívida de Estados, como a Califórnia ou o Delaware. Do mesmo modo, as obrigações europeias não serão contabilizadas na dívida de Estados-membros da UE.
Muitos economistas sustentaram que a Europa não pode salvar-se enquanto não tiver um federalismo fiscal para transferir recursos dos Estados-membros mais fortes para os mais fracos. A Alemanha opõe-se a isto decididamente. A Europa, porém, não precisa nem de um federalismo fiscal nem do "governo económico" invocado por Nicholas Sarkozy para financiar um programa de recuperação idêntico ao "New Deal". Já existem instituições e poderes para tal.
O Banco Europeu de Investimento (BEI) - já com o dobro da dimensão do Banco Mundial - emite obrigações garantidas por si e não pelos Estados-membros, razão pela qual os Estados-membros não contabilizam estes financiamentos nas suas dívidas nacionais.
Desde 1997 que ao BEI foi confiado, pelo Conselho Europeu, um mandato para a coesão e convergência para investir na saúde, na educação, na renovação urbana, nas tecnologias verdes e no apoio às pequenas e médias empresas. Desde então, quadriplicou os seus empréstimos anuais para €80 mil milhões, ou seja, dois terços dos "recursos próprios" da Comissão Europeia, e podia quadriplicar isto de novo até 2020, o que seria equivalente em matéria de financiamento ao Plano Marshall do pós-guerra.
O BEI só co-financia investimentos. Este desiderato podia ser respeitado através de emissões de obrigações da UE, ou obrigações do BCE denominadas em euros capazes de atrair os excedentes dos bancos centrais e dos fundos soberanos das chamadas "economias emergentes" e, consequentemente, estabilizar a Zona Euro. Tanto a Alemanha como a França opuseram-se, em 1993, à proposta de Jacques Delors de criação destas obrigações. Agora só a Alemanha continua a opor-se.
Esta tarefa não compete mais ao BCE do que aos Estados. O Tratado de Lisboa confirma que o objectivo principal do BCE será o de manter a estabilidade dos preços. Mas também que, "sem prejuízo de tal objectivo, deverá apoiar as políticas económicas genéricas da União a fim de contribuir para o cumprimento dos seus objectivos".
Isto imita os estatutos do Bundesbank (que o obrigam a "apoiar as políticas económicas genéricas do governo"), e, simultaneamente, ao Conselho Europeu o Tratado também confere poderes para definir "políticas económicas genéricas", de que uma já é o Programa Europeu de Recuperação Económica. Com a UE à beira da recessão a estabilidade dos preços não está em risco.
Isto pede uma mudança da "Gestalt" alemã, tanto em relação à estabilização da dívida como relativamente è emissão de obrigações pela UE. Ou, se a Alemanha não mudar, a sua introdução por parte dos Estados-membros, e não necessariamente por todos, à semelhança do que aconteceu com o próprio euro, a fim tanto de salvaguardar a Zona Euro como de tornar o Programa Europeu de Recuperação Económica uma realidade.
Professor, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra
Isto não deixa de ter relação com o facto de dívida em alemão - "Schuld" - também ter o significado de culpa. Mas o que é preciso também se diz em alemão: uma mudança de "Gestalt" que leve ao reconhecimento de que ao passo que os Estados-membros da UE se afundaram em dívida para salvar bancos e fundos de investimento, a União Europeia propriamente dita não tem praticamente nenhuma dívida. Não tinha de facto nenhuma até Maio passado, quando o Banco Central Europeu começou a comprar tranches da dívida pública de alguns Estados-membros.
Uma solução mais simples e menos custosa consistiria em cortar o nó górdio da dívida pública, transferindo uma parte dela para o Banco Central Europeu. Se atingisse 60% do PIB, como consente o Pacto de Estabilidade e Crescimento, reduziria o risco de incumprimento dos Estados-membros mais expostos, baixaria os seus custos de serviço da dívida e enviaria aos mercados financeiros um sinal de que os Estados europeus têm uma resposta proactiva à presente crise, em vez de serem vítimas passivas de agências de "rating" de crédito não-eleitas.
Uma transferência por tranches ("tranche transfer") não seria um cancelamento da dívida. Os Estados-membros cujos títulos de dívida pública fossem transferidos para o BCE seriam responsáveis pelo pagamento de juros, mas a taxas mais baixas.
Contudo, unicamente a estabilização da dívida não será a resposta para a presente crise da Europa. Os governos da UE tencionam cortar tanto a dívida como os défices orçamentais a uma escala que se arrisca a provocar uma deflação induzida por esta "contracção competitiva", negando o compromisso assumido em 2008, aquando da aprovação do Programa Europeu de Recuperação Económica, correndo-se o risco de se ter uma profunda recessão e uma enorme crise de confiança tanto relativamente aos mercados como aos Estados.
O que é preciso é aprender com o "New Deal", de Roosevelt, cujo êxito deu a Truman a confiança necessária para estabelecer o Plano Marshall de que a própria Alemanha beneficiou. E isto tornou-se exequível porque foi possível tomar emprestado para investir através das obrigações do Tesouro dos EUA. Estas não eram contabilizadas na dívida de Estados, como a Califórnia ou o Delaware. Do mesmo modo, as obrigações europeias não serão contabilizadas na dívida de Estados-membros da UE.
Muitos economistas sustentaram que a Europa não pode salvar-se enquanto não tiver um federalismo fiscal para transferir recursos dos Estados-membros mais fortes para os mais fracos. A Alemanha opõe-se a isto decididamente. A Europa, porém, não precisa nem de um federalismo fiscal nem do "governo económico" invocado por Nicholas Sarkozy para financiar um programa de recuperação idêntico ao "New Deal". Já existem instituições e poderes para tal.
O Banco Europeu de Investimento (BEI) - já com o dobro da dimensão do Banco Mundial - emite obrigações garantidas por si e não pelos Estados-membros, razão pela qual os Estados-membros não contabilizam estes financiamentos nas suas dívidas nacionais.
Desde 1997 que ao BEI foi confiado, pelo Conselho Europeu, um mandato para a coesão e convergência para investir na saúde, na educação, na renovação urbana, nas tecnologias verdes e no apoio às pequenas e médias empresas. Desde então, quadriplicou os seus empréstimos anuais para €80 mil milhões, ou seja, dois terços dos "recursos próprios" da Comissão Europeia, e podia quadriplicar isto de novo até 2020, o que seria equivalente em matéria de financiamento ao Plano Marshall do pós-guerra.
O BEI só co-financia investimentos. Este desiderato podia ser respeitado através de emissões de obrigações da UE, ou obrigações do BCE denominadas em euros capazes de atrair os excedentes dos bancos centrais e dos fundos soberanos das chamadas "economias emergentes" e, consequentemente, estabilizar a Zona Euro. Tanto a Alemanha como a França opuseram-se, em 1993, à proposta de Jacques Delors de criação destas obrigações. Agora só a Alemanha continua a opor-se.
Esta tarefa não compete mais ao BCE do que aos Estados. O Tratado de Lisboa confirma que o objectivo principal do BCE será o de manter a estabilidade dos preços. Mas também que, "sem prejuízo de tal objectivo, deverá apoiar as políticas económicas genéricas da União a fim de contribuir para o cumprimento dos seus objectivos".
Isto imita os estatutos do Bundesbank (que o obrigam a "apoiar as políticas económicas genéricas do governo"), e, simultaneamente, ao Conselho Europeu o Tratado também confere poderes para definir "políticas económicas genéricas", de que uma já é o Programa Europeu de Recuperação Económica. Com a UE à beira da recessão a estabilidade dos preços não está em risco.
Isto pede uma mudança da "Gestalt" alemã, tanto em relação à estabilização da dívida como relativamente è emissão de obrigações pela UE. Ou, se a Alemanha não mudar, a sua introdução por parte dos Estados-membros, e não necessariamente por todos, à semelhança do que aconteceu com o próprio euro, a fim tanto de salvaguardar a Zona Euro como de tornar o Programa Europeu de Recuperação Económica uma realidade.
Professor, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra