Opinião
A Capital do desencanto
O amor que os portuenses devotam à sua cidade mede-se também pelo tempo que dedicam a debatê-la. Só eles o fazem assim. Só eles vivem a sua cidade dessa forma. Com o devido respeito, é preciso ser-se portuense, pelo menos durante uma boa temporada, para s
Prometi no meu último escrito que dedicaria o próximo artigo nesta página a escrever sobre a minha cidade. O Porto.
Confesso que por diversas vezes quase me decidi a atropelar a promessa. Decidi-me por fim a cumpri-la, todavia não muito convencido de que o escrito final não viesse a merecer cento e um cortes e revisões que - e isso eu sabia de antemão - não iria sequer ter tempo para efectuar.
Procurei escolher um título sugestivo. As duas últimas décadas permitiram assistir à emergência, lenta e gradual, de um novo Porto, capital de um angustiante e frustrado desencanto.
Não tenho dúvidas de que, neste ponto, muitos dos potenciais leitores desta prosa já terão virado a página. «Porto? Lá vêm estes gajos com a mania de que são importantes. Isso não é prioridade. Ora ora, páginas da OPA ou do défice?»
O amor que os portuenses devotam à sua cidade mede-se também pelo tempo que dedicam a debatê-la. Só eles o fazem assim. Só eles vivem a sua cidade dessa forma. Com o devido respeito, é preciso ser-se portuense, pelo menos durante uma boa temporada, para se conseguir entendê-los.
Os portuenses estão hoje mergulhados em permanente introspecção psicanalítica. Comparam a sua cidade obsessivamente, sobretudo com uma Lisboa cada vez mais distante em progresso, oportunidades e grandiosidade. Diagnosticam doentiamente os males da sua região e das suas gentes, em todas as suas dimensões, por vezes no ínfimo detalhe do perfil de uma escadaria do Metro, da calçada de um passeio na Baixa, do descuido verbal de um vereador camarário. Flagelam-se com culpabilizações pela ruína dos mais variados projectos.
Revelam-se saudosistas de tempos - que não sabem bem precisar mas que sugerem não ser tão remotos assim -, em que a sua região parecia abraçar prosperidade, poder e pujança. Indigitam e dirigem preces a potenciais Messias salvadores que os arranquem desse desencanto sofrido. Autoproclamam-se expoentes (vulgo «Capitais») da cultura, da ciência ou do desporto, assim que ao virar da esquina surja um novo museu, a conquista de um galardão internacional por um cientista residente nas proximidades ou uma façanha no futebol.
Não que lhes falte arrojo na enunciação de soluções. Da regionalização à simples fusão de Municípios em geometrias variáveis. Talvez Porto mais Gaia, talvez Matosinhos na «marquise» e a Maia como um terraço recuado, Valongo e Espinho fora de um condomínio fechado que, seja como for, tem que ser suficientemente grande. Dos que invocam o reforço do papel das Juntas Metropolitanas ao tribalismo futeboleiro vincadamente anti-lisboeta. Passando pela criação de movimentos cívicos ou mesmo de partidos políticos regionais, ainda que a Constituição pareça proibi-lo taxativamente. Um breve passeio pelo fervilhante mundo dos blogs mais regionalistas e pela imprensa de produção local coloca-nos perante um diversificadíssimo portfolio de desafios programáticos em busca da ansiada Salvação, mais ou menos lúcidos, mais ou menos surrealistas.
Mas, mais do que contra si próprios, a retórica dos portuenses dirige-se fundamentalmente contra a capital. Contra um centralismo voraz que ao longo dos anos não apenas lhes foi sugando e sonegando atenção, bem-estar, oportunidades de emprego qualificado, centros de decisão públicos e privados como, mais recentemente, passou a privá-los da companhia de filhos definitiva e precocemente emigrados para uma capital que passou a monopolizar ofertas profissionais atractivas.
De quando em quando, o Porto lá ousa levantar a voz e pedir meças. Pudera, o resto do país está suprimido há muito. Não tem nem voz nem a massa crítica e as elites que à «Capital do Norte» ainda sobram. Mas debalde. Reivindicações, queixas e lamúrias, razoáveis ou não, esbarram na indiferença ou, na melhor das hipóteses, em escarnecedores esgares de gozo: «Olha-me para estes?» A capital encolhe os ombros. E segue o seu caminho. Os anos ajudaram-me a compreender - ainda que não a aceitar - essa atitude. Sobranceira, arrogante, de profundo desprezo. De irresponsável ignorância quanto ao que é o país real, a «província».
O actual declínio económico regional do Grande Porto é por demais evidente. O Norte caminha agora muito perto do carro-vassoura das regiões europeias. Seguramente, toda a região está mergulhada na mais grave e persistente depressão desde o final da segunda grande guerra, e só para não recuarmos mais no tempo.
Talvez paradoxalmente, todavia, conta com infra-estruturas cada vez melhores e mais modernas. Atrai cada vez mais gente, a crer nas estatísticas demográficas. Beneficia de toda a tipologia de oferta de serviços que se podem encontrar numa moderna metrópole europeia de dimensão equivalente. Alimenta invejas, com Serralves, a Casa da Música, a maior Universidade do país, o futebol de maior reputação no mundo. Está dotada de restauração e hotelaria de alta qualidade. De grandes eixos rodoviários. De estádios de futebol que fazem inveja aos clubes londrinos ou espanhóis. De um aeroporto moderníssimo, recentemente ampliado e inaugurado com adequado foguetório. De um porto comercial financeiramente rentável e competitivo. De um projecto de metropolitano que constitui um «case-study» para cidades dispersas pelos cinco continentes. E pontua até, diz-se por aí, como a região-plano que mais terá beneficiado de fundos no âmbito do último Quadro Comunitário de Apoio.
Perguntar-se-á: afinal, o que falta ao Porto?
Pois é. Como o leitor acaba de constatar, nos tempos que correm a companhia de um portuense pode revelar-se crispada, além de muito pouco descontraída. Todavia, voltarei de novo ao tema. No entretanto, e se não vive por estas bandas, venha até cá. E instale-se por uns tempos. Nada como observar de perto a realidade. Começará então a perceber muita coisa em que talvez nunca tenha pensado.