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Andrés Velasco - Economista 31 de Julho de 2012 às 00:01

A austeridade segundo Santo Agostinho

Os guardiães da austeridade na Europa estão a ripostar.

Quando alguns economistas falaram de pânico e de crise de confiança, falavam deles mesmos. Os fundos de resgate e as Eurobonds eram um convite ao conflito de interesses. Injectar dinheiro para resolver o problema mostrou ser desnecessário. O problema da Europa era um problema bem antigo: demasiados gastos. Agora que os tecnocratas substituíram os populistas entre os membros mediterrânicos da Zona Euro, uma austeridade orçamental sustentada irá tirar-nos dos apuros.

Soa bem, não soa? Se ao menos fosse verdade…

Para perceber o quão errónea é esta narrativa, imagine a Europa de hoje sem a poderosa arma dos empréstimos baratos, a três anos, concedidos pelo Banco Central Europeu aos bancos comerciais do Velho Continente. Você não precisa de ser um convicto defensor do Keynesianismo para perceber que o risco dos países do Sul da Europa continuaria a escalar e que os rumores sobre incumprimento continuariam a circular em todo o lado.

Essa intervenção do BCE foi necessária porque a crise de confiança devastou grande parte da Zona Euro, com as obrigações sobernanas e os bancos a pagarem o preço de um ataque especulativo em câmara lenta.

A lógica relevante está no centro da macroeconomia moderna – precisamente o tipo de pensamento que os líderes europeus ignoraram, por sua própria conta e risco. Um país com uma vasta dívida pública (digamos, mais de 50% do PIB) está seguro se todos pensarem que o serviço da dívida será honrado; a taxa de juro cobrada sobre essa dívida mantém-se baixa e o país consegue de facto pagá-la, seguindo o rumo das virtuosas expectativas auto-cumpridas.

Mas tudo muda se os mercados começarem a suspeitar que a dívida pode não ser reembolsada; nesse caso, o juro exigido pelos investidores pode subir tanto que o país acaba por não conseguir pagar. Segue-se o incumprimento, decorrente de um vicioso pânico auto-cumprido.

Se o mercado obrigacionista de um país estiver prestes a passar de uma dinâmica virtuosa para uma dinâmica viciosa, só há uma solução. Os adeptos das armas de fogo chamam-lhe a "grande bazuca"; os seguidores de Colin Powell defendem o uso de uma "força esmagadora"; os pirófobos chamam-lhe "firewall" ("barreira de protecção"); os marinheiros gostam de "amarrar-se ao mastro". Mas tudo isto acaba por se resumir à mesma coisa: ter dinheiro suficiente para que ninguém duvide, nem por um segundo, que a dívida será reembolsada.

Se os líderes europeus tivessem posto em marcha um fundo de resgate dotado de uma esmagadora força financeira em inícios de 2010, a Europa e o resto do mundo teriam sido poupados a dois anos de agonia. Finalmente, foi o BCE que deu o passo em frente, injectando liquidez nos bancos da Zona Euro de modo a garantir que estes podiam comprar qualquer obrigação soberana “que se mexesse” – todas e mais algumas.

Consequentemente, os ataques especulativos pararam, pelo menos temporariamente (se bem que os “spreads” das obrigações espanholas e de outras obrigações soberanas tenham voltado a disparar). Essa foi a primeira tarefa. Mas ainda falta uma e é aqui que uma vez mais os guardiães da austeridade se enganam.

Um país que tenha dívida pública de pequena dimensão não pode ser vítima de uma corrida à dívida. É aqui que a Grécia, Portugal, Itália e Bélgica diferem do Canadá, Noruega, Singapura e Chile. No passado, alguns país europeus gastaram a mais e tributaram a menos, estando agora a pagar por isso. Para evitar uma repetição dos últimos dois anos, eles têm de reduzir drasticamente as suas dívidas públicas.

A questão que se coloca é "como?". Na Grécia, o perdão da dívida foi a única solução. Parte desse perdão foi concedido, mas será necessário mais.

Para o resto da Europa, a forte austeridade inicial defendida pela chanceler alemã Angela Merkel – e apoiada pela ortodoxia prevalecente na Alemanha – não vai resolver as coisas.

A Espanha é um exemplo. Os gastos públicos foram reduzidos e os impostos aumentados. Um novo governo conservador reafirmou o compromisso de Espanha perante a austeridade. Ainda assim, as metas do défice continuam a não ser atingidas. A derrapagem orçamental atingiu 8,5% do PIB em 2011 e, depois de muito "regateio" com Bruxelas, a meta foi reduzida para 5,3% do PIB em 2012. Com a produção estagnada ou em queda, o rácio da dívida em relação ao PIB continuará a aumentar.

A chave para a solução reside na súplica de Santo Agostinho: "Senhor, concedei-me a castidade e auto-controlo, mas não ainda". Um Tratado Orçamental como o que foi recentemente aprovado é útil para sedimentar as expectativas de um futuro ajustamento, mas só se o novo sistema for suficientemente flexível para ser politicamente credível.

O gradualismo inicial é o segredo do êxito. E o ajustamento deve estar associado a uma estratégia de crescimento. As receitas só crescerão de forma consistente se a base tributária – ou seja, a economia – crescer. E esse crescimento requer um maior investimento público em infra-estruturas e em capital humano.

Os guardiães da ortodoxia não parecem estar prontos a defender uma estratégia de crescimento desta natureza. Alguém estará?

Andrés Velasco, ex-ministro chileno das Finanças, é professor convidado da Universidade de Columbia.

Direitos de autor: Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro


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