Opinião
Aos seus lugares, prontos, partida
Depois de um período de férias, certamente curto, tudo está preparado, nos seus lugares, pronto para o reativar da normalidade na vida, seja lá o que isto venha a significar.
As escolas com novas rotinas e normas estão a reabrir, as empresas estão, como sempre, a lutar, a vender e a produzir, o trânsito (e as emissões) a recuperar os valores pré-covid, e o futebol e outros desportos a regressarem ao seu ritmo. Estamos nos nossos lugares, estamos prontos e é o momento de “partir”. Desta vez, porém, o percurso permanece ainda incerto. E, nesse sentido, os próximos meses vão-nos dizer muito sobre o que poderá vir a ser a trajetória da recuperação global.
Na realidade, a incerteza generalizada permanece. Sobre a evolução da pandemia, desde logo, mas também em âmbitos estruturais da economia e da sociedade. E é neste contexto que se revela a importância de partir, avançar, definir a estratégia e pôr-se a caminhar, com ou sem pandemia. É esse o exercício que hoje vos proponho.
Num cenário otimista, até ao final deste ano, pode esperar-se a aprovação de pelo menos duas vacinas covid-19 de primeira geração. Graças aos extraordinários apoios dos governos, essas vacinas entrarão em produção mesmo antes da conclusão dos testes clínicos em humanos. Presumindo que sejam eficazes, referem os analistas que as empresas de biotecnologia terão cerca de 200 milhões de doses disponíveis até ao final de 2020 e estarão aptas a produzir mais uns quantos biliões de vacinas. A sua distribuição será outro desafio, em parte porque todos precisaremos de ser convencidos de que uma vacina acelerada é segura. Mesmo assim, com alguma sorte, os cidadãos de países desenvolvidos que desejem vacinar-se, recebê-la-ão até o final de 2021. Na China, entretanto, praticamente todos terão sido vacinados até então. Algum tempo (anos?) depois, o mesmo acontecerá com a maior parte da população mundial, incluindo aqueles que vivem em economias emergentes.
Este cenário é plausível, mas não garantido. O vírus pode-se mostrar mais teimoso do que o previsto, as vacinas de primeira geração podem ser eficazes, mas apenas por um curto período ou virem a apresentar efeitos colaterais ainda desconhecidos (aliás, não é por acaso que os laboratórios farmacêuticos estão a exigir aos governos que os eximam de litigação relativa aos efeitos colaterais). Mas, mesmo nestas circunstâncias, a melhoria e o acesso generalizado aos testes, o desenvolvimento de tratamentos antivirais mais eficazes e uma melhor adesão aos comportamentos sociais recomendados, a seu tempo, poderão levar à gradual contenção do vírus. Vale a pena relembrar que a influenza de 1918-20, que matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo – muitas numa segunda onda mortal do tipo da que atualmente tememos hoje com a covid-19 – com o tempo perdeu intensidade e acabou por desaparecer sem qualquer vacina.
Num cenário mais pessimista, os novos surtos podem ser ainda mais agressivos e a esta crise virem juntar-se outras crises com diferentes causas – um aumento acentuado dos atritos comerciais e políticos a nível mundial, um ataque ciberterrorista à escala global ou uma catástrofe natural relacionada, ou não, com as alterações climáticas.
Independentemente do curso da pandemia, as consequências para o crescimento, o emprego e a política já se fazem sentir e permanecerão por muito tempo.
Em relação ao crescimento, a Índia é o exemplo mais devastador e que nos pode fazer refletir. Neste momento, a Índia é o segundo país com mais casos identificados a nível mundial (só num dia, a 30 de agosto, contabilizou 78.000 novos casos de covid-19), mas também a economia mais penalizada pela pandemia (entre abril e junho, apresentou uma contração de cerca 23,9% em comparação com o mesmo período do ano anterior).
Quanto ao emprego, as notícias não são menos preocupantes. Em Portugal, de acordo com as últimas estatísticas publicadas pelo INE, a taxa de desemprego subiu de forma abrupta em junho e de novo em julho, atingindo os 8,1%, o valor mais alto desde agosto de 2018. E se alargarmos o olhar por exemplo para os países da OCDE, de acordo com as suas próprias projeções, o desemprego deverá aumentar para 9,4% em média até o final de 2020 (era de 5,3% no final de 2019) ou 12,6%, no caso de uma segunda onda pandémica até ao final do ano. Para além disso, a descida da taxa de desemprego será lenta e gradual, acompanhando a recuperação económica.
Por último, no que se refere à política, assistimos diariamente a focos de tensão a acontecerem um pouco por todo o mundo, com destaque recente para a Bielorrússia, Hong Kong e, como sempre, os EUA.
Estas considerações recordam-me Churchill que, segundo consta, costumava dizer que nunca se deve desperdiçar uma boa crise e aconselhava a transformar as preocupações antecipadas em estratégia antecipada. Difícil? Sem dúvida, mas a resposta certeira li-a num artigo recente publicado no AESE Insight da autoria do Prof. Adrian Caldart ao referir que “quanto mais difícil é definir a estratégia, mais dela necessitamos”. Nesse mesmo artigo desafiava as empresas a refletir sobre a estratégia e a visão que a inspira e apresentava três posicionamentos estratégicos alternativos que a empresa pode considerar dependendo do contexto e da avaliação que fizer. Resumem-se em 3 R: Retirar-se, Resistir ou Reinventar-se. Retirar-se significa fazer escolhas e “deixar cair algumas coisas” como Jobs fez quando regressou à Apple em 1997 e potenciou a recuperação com êxito da empresa. Resistir é entender que o temporal é passageiro, o setor recuperará e o futuro encontrar-nos-á mais fortes e bem posicionados ante a concorrência. Reinventar-se é acreditar que o setor e o mundo mudaram e que vale a pena focar-se em novas oportunidades e ativar novos modelos de negócio.
Seja qual for a estratégia escolhida pela empresa, é bom recordarmos que, em tempos de crise, tomamos decisões que refletem os nossos valores. Embora a sobrevivência e a recuperação sejam fundamentais, precisamos de estar atentos ao tipo de mundo que criamos ao emergir deste desafio.
Um belo exemplo da Natureza, de como os acontecimentos perduram no tempo, é o episódio relatado, na quarta-feira passada, por astrofísicos do Max Planck Institute for Gravitational Physics. Numa galáxia muito, muito distante, um par de buracos negros explodiu. Fez um “barulho” alto e agudo. Foi a colisão mais ruidosa, massiva e violenta jamais ocorrida entre dois buracos negros. Na verdade, o momento real da queda foi há cerca de sete biliões de anos. Ora este curto sinal de há muito, muito tempo, deixou os astrofísicos com novas questões sobre como os buracos negros se formam e crescem.
As nossas escolhas não sei se ressoarão em biliões de anos, mas certamente marcarão gerações, sobretudo a geração das crianças em idade escolar e a geração dos jovens, empregados ou desempregados, que lutam por vislumbrar um futuro digno. E também eles nos interrogarão sobre a sociedade que hoje estamos a construir.